quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Transformando argumentos em fumaça

Antigamente, durante um debate, havia algo chamado argumento. Paulinho da Viola mesmo compôs um samba que começa assim: “Tá legal, eu aceito o argumento...” (1975)

E havia diferentes tipos de debatedores.

O primeiro tipo, o debatedor honesto, quando se via frente a um argumento convincente, era obrigado a admitir que podia estar errado, ou pelo menos dizia que ia pensar sobre o assunto – um sinal de respeito ao debate e ao outro debatedor. Dava-se o braço a torcer.

Outro tipo, o debatedor desonesto, frente a um argumento convincente, simplesmente o desprezava. Podia fingir que não tinha ouvido, ou que ouviu mas não entendeu. Ou, ouvindo e entendendo, fazia que não era com ele. Um coronel dos tempos (não idos) do coronelismo podia desprezar um argumento convincente, pois tinha outras formas de se impor: jagunços, armas e o apoio de policiais, juízes e políticos poderosos.

Tudo isso virou coisa do passado. Ou dos “tempos modernos”. Hoje, em tempos “posmodernos”, “cada um tem a sua verdade”. Para que servem argumentos, quando não faz mais sentido dizer “eu estou certo” ou “você está certo”. Ou “eu estou errado”, “você está errado”, ou ainda “estamos ambos errados”. Ninguém está errado mais. Pelo menos é o que o projeto posmoderno quer que acreditemos quando, em seus textos didáticos, chamam opinião de verdade.

As consequências são terríveis.

Nas votações da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) sobre a aprovação de organismos transgênicos, podemos ler os votos dos conselheiros. Lembro de ter lido a ata de uma reunião anos atrás. O único conselheiro contrário à proposta dava excelentes razões para a sua desaprovação. Ou seja, tinha excelentes argumentos. Os demais conselheiros, todos vendidos favoráveis à proposta, apenas diziam que “eram favoráveis” ou que “achavam que o dito organismo não devia causar mal”. Será que leram o argumento bem construído pelo único voto contrário? Ou, numa democracia posmoderna, apenas votaram (e “isso basta”)?

Durante a votação sobre o impeachment da ex-presidenta Dilma, a maioria dos parlamentares não se deram ao trabalho de justificar suas posições. As “pedaladas fiscais” incansavelmente usadas durante a campanha publicitária prévia – foram então esquecidas. Quando cada um tem a “sua verdade”, não é necessário se justificar perante “outras verdades”.

Os defensores desse caos calculado pensam (será?) que assim estão garantindo a pluralidade necessária à boa democracia. Estariam garantindo os direitos de mulheres, negros, indígenas, homossexuais, travestis, usuários de drogas ilícitas e outros grupos minoritários, excluídos ou privados de certos direitos. Mas se cada um tem “uma verdade”, e o diálogo, a argumentação e o convencimento são quase impossíveis, então os homens brancos cristãos heterossexuais bebedores de whisky não são obrigados a rever conceito algum. Podem permanecer com “suas verdades” machistas, racistas, dogmáticas, homofóbicas, elitistas... E uma vez que são os donos do capital, dos jornais, das emissoras de rádio e TV, das igrejas, gráficas e editoras, têm agora ainda mais sucesso na divulgação de seus ideais conservadores, pois não há resistência. A antiga resistência não pode mais se organizar. Está dividida, cada um com a “sua verdade”, cada qual no seu quadrado.

Essa é uma das formas como os poderosos usaram intelectuais bem pagos para divulgar uma doutrina que serve perfeitamente aos seus interesses. E a esquerda brasileira, quando vai acordar e perceber que caiu no conto do vigário?

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