1. Não há certezas
O
método científico examina hipóteses através de experimentos e,
via de regra, calcula a chance
de uma hipótese refletir a realidade, ou do oposto – o que
observamos no experimento foi apenas uma coincidência,
e não uma confirmação da hipótese (por
exemplo, o sistema
imune dos pacientes, e não o medicamento aplicado, pode ter sido o responsável pela cura).
O mais importante aqui é a medida dessa chance
ou probabilidade,
chamada p.
O valor de p
fica entre 0 e 1, ou entre 0% e 100%, sem jamais alcançar esses
extremos. Se o
p
calculado
é de
0.5, há uma chance de 50% da nossa hipótese ser válida – uma
margem de erro alta demais para levarmos a hipótese a sério, por isso a descartamos. Se o p
é de 0.04, há 4% de chance de coincidência, e podemos até aceitar
a hipótese, mas com reservas. Novos experimentos serão
necessários
para aumentarmos a confiança na hipótese proposta (se for o caso).
Se o valor de p
é de 0.0001, há uma chance menor de coincidência, e a
nossa confiança na hipótese é maior. Ou
seja,
p
pode ser reduzido cada vez mais, alongando as casas decimais
(0.00000000001…) mas jamais
chega a zero.
Em outras palavras: a
ciência nunca prova nada,
apenas aumenta nossa confiança em algumas
hipóteses. Provas só existem na matemática pura, mas
o termo é (mal) usado também no direito e em algumas religiões. E,
claro, em má divulgação de como a ciência funciona. O p
jamais chega a zero. Não
há certezas.
2. Materialismo
Uma vez que não há
certezas, tudo se resume a hipóteses – mais prováveis ou menos
prováveis. Podemos até ter a “certeza cartesiana” de que
existimos, mas não podemos saber se o Universo ao nosso redor é
real ou se é apenas uma ilusão, uma projeção mental feita num
Universo paralelo onde nosso corpo real dorme e sonha. O filme Matrix
(1999) aproveitou essa teoria filosófica, chamada solipsismo.
Assim, não temos como saber ao certo se a mente cria a matéria ou se a matéria cria a mente. A primeira hipótese é comum tanto ao solipsismo (a nossa mente cria a matéria) quanto ao criacionismo mítico ou religioso (a mente de um ou mais deuses cria a matéria). A segunda hipótese (a matéria cria a nossa mente) é o que costumamos chamar materialismo filosófico (não confundir com aquelas pessoas "materialistas" que só dão valor ao dinheiro). Mas se não podemos saber, só nos resta confiar ou, mais precisamente, supor.
Analisando a diversidade de mitologias existentes, algumas delas chamadas religiões, me parece mais provável que nós as tenhamos criado. A hipótese alternativa, uma delas é verdadeira (ou mais de uma) tornaria todas as outras inválidas, e isso me parece parcial demais, seja em que direção for. Quem estaria certo? O monoteísmo judaico? O monoteísmo cristão? O monoteísmo muçulmano? O politeísmo hindu? O politeísmo yanomami? O politeísmo de alguma tribo africana ou da Polinésia? Por que escolher? Se podemos ter evoluído a partir do pó (e a ciência tem hipóteses bastante plausíveis sobre isso), os mitos seriam apenas crônicas da criação, desenvolvidas por diferentes povos em diferentes contextos ecológicos. Sem poder ter certeza, me satisfaço com essa versão imparcial da realidade. Suponho que a matéria cria a mente, não o contrário.
3. Diversidade
Se viemos do pó, o
processo foi longo e criou também todas as formas de vida que
conhecemos: bactérias e vírus, líquens e árvores, mosquitos e
besouros, baleias, orangotangos e pessoas. Fazemos todos parte da
mesma Árvore da Vida.
Somos parentes. A
diversidade da vida na Terra se estende à diversidade dos
agrupamentos, povos,
etnias e raças humanas.
Cada povo com uma mitologia criada de acordo com a sua experiência
em seu próprio habitat. Assim, compreendemos que um povo do deserto
não coma carne de animais onívoros como porcos, pois comer animais
ruminantes aproveita melhor os recursos existentes. E que um povo
extremamente numeroso não
consuma
carne de vacas, extremamente úteis pelo leite que
serve de alimento, pela
urina que serve de adubo e pelas fezes que servem de adubo,
combustível e material de construção, sem falar ainda no couro,
ossos e chifres dos
animais que morrem naturalmente. E que outro povo extremamente
numeroso invista em ainda outra estratégia, comendo de tudo um
pouco, preferencialmente vegetais, mas sem poupar nenhuma fonte
adicional de proteínas, incluindo cachorros. Será
possível vivermos em paz sem entendermos que cada povo tem suas
próprias peculiaridades? Ou
vamos nos destruir a todos, e ao planeta, tentando impor aos outros o
que se mostrou melhor para os nossos ancestrais num ambiente específico?
Embora o método científico tenha bastante poder de análise, síntese e predição, as mitologias dos diferentes povos não são muito diferentes. Também são baseadas em experimentos feitos num passado distante, onde os resultados mais confiáveis foram preservados na memória coletiva, passando a ditar regras de comportamento, que podem ser observadas com maior ou menor rigor.
Além disso, o método científico levaria séculos para redescobrir o que cada um desses povos descobriu em seu próprio ambiente (e uma floresta é muito diferente de uma savana, e ambos de um deserto, e um deserto quente é muito diferente de um deserto gelado, e assim por diante). Logo, embora o método científico moderno, auxiliado por instrumentos modernos (como microscópios e telescópios), possa descobrir coisas em alta velocidade, não pode substituir todos os conhecimentos acumulados por milhares de povos vivendo em incontáveis ambientes. Os medicamentos hoje desenvolvidos a partir de plantas selvagens não são feitos na base da tentativa e erro com cada uma das centenas de milhares de espécies de plantas tropicais. Os cientistas partem do conhecimento desses povos “primitivos”, que sabem quais plantas ajudam a combater quais males. E as plantas que ocorrem num quilômetro quadrado de floresta nem sempre são encontradas no quilômetro quadrado seguinte, onde outra espécie pode ou não substituí-la.
Dessa forma, as mitologias dos povos devem ser respeitadas – tanto pela ciência quanto pelas grandes religiões – pois guardam um conhecimento que é útil, e muitas vezes sagrado, para aqueles povos, conhecimento que pode se tornar útil a toda a humanidade. De preferência se isso ocorrer num espírito de compartilhamento, de troca, e não de simples roubo e destruição.
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