quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Os defensores do posmodernismo são de direita, ou apenas não veem seus efeitos contra a esquerda?

Publicado inicialmente em philosophy.stackexchange.com. Como os moderadores são em sua maioria de direita, já estou prevendo que a questão não será bem recebida, isso se não for fechada. É que a direita tem, por definição, problemas com a honestidade quando precisa de votos numa democracia; e isso obviamente se estende à Academia e além...

Em uma decisão recente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) sobre a aprovação ou não de uma certa semente transgênica, eu li os votos dos membros da comissão e seus argumentos. Na verdade, o único membro a apresentar qualquer argumento foi o único voto contrário à aprovação. Em três páginas, ele apresentou uma lista das razões pelas quais ele pensava que aquela semente ainda não era segura para produção em massa. Todos os outros membros (cerca de dez) apenas votaram pela aprovação, sem ao menos argumentar por que pensavam que o outro membro estava errado. Você não precisa fazer isso em tempos posmodernos. "Cada um tem a sua verdade", então qual é o ponto em debater? Os posmodernos não veem nenhuma utilidade em tentar alcançar um consenso. Eu não estou certo se os dez membros da comissão receberam algum dinheiro para ajudá-los a decidir seus votos (o que é provável), o maior problema é que eles podem votar sem explicar suas razões (o que é um escândalo, uma vez que havia fortes razões para votar contra a aprovação). Esta "morte da razão" é a mais trágica consequência do posmodernismo.

Que o posmodernismo de fato prejudica a esquerda é algo que bem poucas pessoas perceberam nos seus primeiros dias, mas agora na era Trump isso está ficando cada vez mais evidente.

O número de críticas contra o posmodernismo é não apenas enorme, mas muitas delas vêm de intelectuais muito respeitados. Quando Derrida ganhou um título honorário em Cambridge, por exemplo, alguns deles (incluindo Barry Smith, Hans Albert, David Malet Armstrong, Ruth Barcan Marcus, Willard Van Orman Quine, Peter Simons, René Thom, entre outros) assinaram uma carta de protesto, onde podemos ler (ênfase minha nesta e nas próximas citações):
Muitos filósofos franceses veem em M. Derrida apenas razão para um embaraço silencioso, seus absurdos contribuindo de forma significativa para a impressão geral de que a filosofia francesa contemporânea é pouco mais que um objeto de ridículo.
(...) Muitos quiseram dar a M. Derrida o benefício da dúvida, insistindo que uma linguagem tão profunda e de difícil interpretação deve de fato esconder pensamentos profundos e sutis.
Porém, quando buscamos compreendê-lo, fica claro, ao menos para nós, que, onde declarações coerentes estão finalmente sendo feitas, essas são falsas ou triviais.
Status acadêmico baseado no que parece para nós ser pouco mais que ataques semi-inteligíveis aos valores da razão, verdade e conhecimento não é, afirmamos, base suficiente para conceder um título honorário em uma universidade reconhecida.
E consideremos o ponto de vista de Chomsky (vídeo, transcrição):
É tudo muito exagerado, você sabe, um monte de prestígio e tudo mais -- tem um efeito terrível sobre o "terceiro mundo" [esta parte não pode ser destacada o suficiente]. No "primeiro mundo", países ricos, não importa tanto. Então se um monte de nonsense continua aparecendo nos cafés de Paris ou no departamento de literatura comparada de Yale -- bem, ok. Por outro lado, no "terceiro mundo", movimentos populares realmente precisam da participação de intelectuais sérios. E se estão todos gritando absurdos posmodernos... bem, então já era. Eu vi exemplos reais -- poderia te mostrar.
Mas -- então há esta categoria. E é considerada bem de esquerda, bem avançada. Bom, parte do que há ali de fato faz sentido. Mas quando a reproduzimos em linguagem acessível, vemos que é banal. Então sim, é perfeitamente verdadeiro que quando olhamos para cientistas no Ocidente, a maioria é de homens. E é perfeitamente verdadeiro que as mulheres tiveram dificuldade em entrar nos campos científicos. E é perfeitamente verdadeiro que existem fatores institucionais que determinam como a ciência age, e que isso reflete estruturas de poder. Quero dizer TUDO isso pode ser descrito literalmente em linguagem acessível, e se tornam coisas óbvias quando as olhamos. Por outro lado, você não se torna um intelectual respeitado apresentando coisas óbvias em linguagem acessível.
Consideremos como o posmodernismo foi usado pela direita recentemente (exemplos aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), apesar da maioria ainda parecer acreditar que se trata de um "movimento de esquerda". Claro, isso não é novidade. Vejamos, por exemplo, esta citação de Benito Mussolini:
Se relativismo significa desprezo por categorias fixas e por aqueles que clamam ser os portadores da eterna verdade objetiva, então não há nada mais relativista que as atitudes e atividades fascistas. A partir do fato de que todas as ideologias têm igual valor, nós fascistas concluímos que temos o direito de criar nossa própria ideologia e aplicá-la com toda a energia de que somos capazes.
(E acho que não preciso descrever como o posmodernismo é um novo tipo de relativismo.)

Ou esta outra do grande historiador, Eric Hobsbawm:
Todavia, de algumas formas eu perdi contato com muitas das correntes da cultura e discussão teórica francesas após a década de 1960, e, embora qualquer admirador de Queneau e Perec não possa evitar ser simpático à tradição intelectual francesa de jogar com a linguagem, à medida que pensadores franceses cada vez mais entraram no território do 'posmodernismo', eu os achei desinteressantes, incompreensíveis, e de qualquer forma sem muito uso para historiadores. Mesmo seus trocadilhos pareceram sem gosto.
Melhor ainda, podemos voltar alguns séculos e nos lembrar das palavras de Schopenhauer:
Se um homem é capaz de pensar qualquer coisa, ele também é sempre capaz de expressá-la em termos claros, legíveis e sem ambiguidade. Esses escritores que criam sentenças difíceis, obscuras, complicadas e ambíguas, mais provavelmente não sabem ao certo o que querem dizer: têm apenas uma consciência vaga a respeito, ainda lutando para se transformar numa ideia. Geralmente, na verdade, seu desejo é esconder de si e dos outros que realmente não têm nada a dizer.
Mostrei algumas outras críticas em outro lugar. Mas o que realmente me incomoda é quantos filósofos (e estudantes de filosofia) insistem em não ver nada de errado sobre isso. A pergunta é: por quê? Não pensaram bastante sobre isso, e apenas assumem que um movimento tão grande e popular "deve estar certo"? Veem nesse movimento uma oportunidade para seu próprio individualismo e falta de interesse no "bem comum"? Pensaram bastante, e realmente acreditam que o posmodernismo é o caminho para o "bem comum"? Estão distantes o bastante do "terceiro mundo" para não verem o que acontece lá? Algum filósofo já publicou suas ideias honestas sobre esse assunto?

PS: Todas essas questões se aplicam não apenas a filósofos e estudantes de filosofia, mas também aos usuários e moderadores desse site.


Observação: 6 horas após colocada a pergunta no site, com 400 visualizações (um recorde para mim), a mesma já teve 3 votos para fechamento. Como eu dizia, a direita odeia perguntas que falem sobre a realidade dos fatos, admitindo apenas perguntas que permitam ao estudioso mostrar como leu até à exaustão textos que nem sempre têm alguma utilidade para a sociedade. Que pena! (Para comparação, esta outra pergunta, relacionada, teve apenas 95 visualizações em 3 dias...)

Sobre as críticas apontadas em "outro lugar", havia uma pergunta sobre a razão do site ter recebido tão poucas nomeações para moderador. Sugeri que devia ter algo a ver com a redução do valor da filosofia no Ocidente, causada pelo posmodernismo e sua valorização do "tanto faz" ("anything goes"). Desnecessário dizer que esta interpretação foi muito mal recebida. Segue aqui sua tradução:

O posmodernismo está destruindo a filosofia séria. Quando a maioria das pessoas concorda que "tanto faz" ou que "tudo é conhecimento", resta ainda algum ponto na lógica e na razão? Na filosofia e na ciência? Tempos sombrios espreitam o Ocidente, e a eleição de alguém como Donald Trump (nem mesmo os republicanos queriam a sua nomeação) é um sinal disso. O obscurantismo é a única forma que as elites encontraram de impedir uma crescente multidão científica/filosoficamente informada de tomar o seu poder. Poucas pessoas perceberam isso, mas o "desejo de ser parte deste século" tem feito a maioria surda aos seus argumentos. Então, tudo isso reflete na eleição neste site, onde eu fui o segundo melhor candidato, mesmo sem saber exatamente como tudo aqui funciona. Obrigado a todos pela experiência!

"Que este tipo de pensamento infantil [de Slavoj ‌‌Zizek] seja celebrado nas universidades e entre uma camada de semi-intelectuais nos dois lados do Atlântico é testemunho da profunda crise da ideologia burguesa." - Zizek in Manhattan: An intellectual charlatan masquerading as “left”

"(...) ideias firmes na raiz do posmodernismo (...) ameaçam nos levar de volta a uma cultura 'pré-moderna' irracional e tribal" - How French “Intellectuals” Ruined the West: Postmodernism and Its Impact, Explained

"Simplesmente manter a visão de que uma realidade objetiva, mensurável existia (i.e. positivismo lógico) era considerado uma violação contra o grupo. Manter esta visão era considerado herético e praticamente considerado um pecado -- Não estou exagerando." - My Apostasy from the Church of Critical Theory

"Neste estado atual, a educação lembra o que os gregos antigos certamente chamariam tragédia: um declínio, ou queda de uma posição outrora mais elevada, mais exaltada. (...) Estudantes não distinguem a Constituição da Declaração de Independência. Estudantes de graduação não conseguem aprender, muito menos dominar, os rudimentos de escrever um parágrafo aceitável. (...) Como insulto final, e ironicamente uma dádiva da programação de televisão recente, graduados adultos têm dificuldade em competir, sem sucesso, com -- de todas as pessoas -- alunos da quinta série em um show de TV." - Tragedy and Comedy in Postmodern Education

"Nós mandamos nossos filhos para a universidade com a melhor intenção do mundo, esperando que eles aprenderão as ferramentas para navegar a realidade observável, e não inculcados com a compulsão de negá-la." - The Quiet Tragedy of Postmodern Education

"(...) o posmodernismo dá uma cláusula de escape a criacionistas, céticos das mudanças climáticas, a administração Bush [ou Trump], e sim, Stephen Colbert, de desprezar fatos e a comunidade baseada na realidade em favor de suas próprias ilusões." - Postmodernism, truth, and bullshit

"A posmodernidade é uma condição de profunda e crescente injustiça, e o posmodernismo é sua ideologia legitimizadora. E enquanto a maioria dos pensadores ocidentais mentem pra si mesmos e argumentam que o posmodernismo é uma teoria nova não-redutiva, não-totalizadora, de liberação, a realidade é que se trata de uma condição que significa restaurantes étnicos e música do mundo para a elite ocidental e devastação, devastação total, para a maioria dos Outros." - A Potent Critique of Western Cultural Imperialism [Customer Review]

"Posmodernismo. Originalmente um tema dentro da estética, colonizou 'áreas sempre crescentes', de acordo com Ernesto Laclau, 'até que se tornou o novo horizonte da nossa experiência cultural, filosófica e política.' (...) O narcisismo consumista e um cósmico 'qual a diferença?' marcam o fim da filosofia como tal e a formação de uma paisagem, de acordo com Kroker e Cook, de 'desintegração e ruína contra uma radiação de fundo de paródia, cafonice e esgotamento.'" - The Catastrophe of Postmodernism

"(...) a solução proposta para este estado de coisas pelos posmodernos é muito, muito pior que a doença: substituir todas as perguntas individuais pelo que basicamente se resume a pensamento coletivo, com a palavra final sobre a verdade sendo quem acredita, e não por quê." - Post-modernism: a lie with some truth in it...

Finalmente, para concluir esta apresentação de evidências sobre por que a filosofia ocidental está dentro (ou muito perto) da UTI (senão abandonada à própria sorte), o Gerador Posmoderno. Que um texto como esses tenha sido aceito numa revista científica "séria" (o Caso Sokal), é evidência bastante que algo definitivamente não cheira bem no reino... Outra linha de evidência é o número de pessoas aqui neste site que prefere ignorar o que está acontecendo, e jamais prestar atenção a este tipo de denúncia.

Resumo (para quem ainda não entendeu como isso se refere à questão)

A filosofia séria, como a ciência séria, está sendo tratada como a "mãe de todos os vícios" pelos posmodernos. A filosofia está se tornando tão relevante quanto a alquimia ou a "ciência da Terra plana". Assim, se a filosofia não passa de um "hobby divertido, embora inútil", por que alguém perderia seu tempo em um trabalho sério como moderador de um fórum de discussão sério sobre filosofia? Eu penso que isso explica por que este site tem tido muito menos nomeações que suas contrapartes científicas (i.e. parece que a filosofia é muito mais dominada pelos vícios do pensamento posmoderno do que as ciências naturais).



Encontrei ainda mais dois argumentos mostrando como o posmodernismo é de direita. Neste ponto, acho que só faz sentido inclui-los aqui, uma vez que os "filósofos profissionais" (pelo menos nos países de língua inglesa) não querem ouvir falar sobre isso...

"Se nós enfrentarmos o posmodernismo de direita com o posmodernismo de esquerda, o único resultado possível é uma política cada vez mais restrita ao "poder faz o certo", e a direita vencerá esta luta." - How Postmodernism Undermines the Left and Facilitates Fascism


"Parece existir um consenso entre a maioria dos filósofos modernos que, em muitos casos, se você escreve de forma incompreensível, suas chances de ser reconhecido como um filósofo sério são maiores do que se você escrever com clareza." - How not to write in philosophy – Against obscurantism




Abaixo, o texto original:

Postmodernism advocates are Right-wing or just can't see its effects against the Left?

In a recent decision from the Brazilian Committee for Biosafety regarding the approval or not of a certain transgenic seed, I've read the delegates votes and their reasoning. Actually, the only one who presented any reasoning was the only vote against the approval. In three pages, the delegate presented a list of reasons why he thought that seed wasn't safe enough for mass production. All other delegates (about ten) just voted in favor of approval, without at least arguing why they thought the other delegate was wrong. You don't need to do this in Postmodern times. "Each one has its own truth", so what's the point in debating? Postmodernists don't see any sense in trying to reach consensus. I'm not sure if the ten delegates received any money to help them decide their votes (what is probable), the biggest problem is that they're allowed to vote without explaining their reasoning (what's scandalous, since there were strong reasons to vote against the approval). This "death of reason" is the utmost tragic consequence of Postmodernism.

That Postmodernism is indeed harmful to the Left is something very few people have noticed in its early days, but now in Trump's era it's becoming more and more evident.

The number of critics against Postmodernism is not only huge, but many also come from very respected intellectuals. When Derrida earned an honorary degree in Cambridge, for instance, some of them (including Barry Smith, Hans Albert, David Malet Armstrong, Ruth Barcan Marcus, Willard Van Orman Quine, Peter Simons, René Thom, among others) signed a letter of protest, where we can read (emphasis mine on this and next quotes):
Many French philosophers see in M. Derrida only cause for silent embarrassment, his antics having contributed significantly to the widespread impression that contemporary French philosophy is little more than an object of ridicule.
(...) Many have been willing to give M. Derrida the benefit of the doubt, insisting that language of such depth and difficulty of interpretation must hide deep and subtle thoughts indeed.
When the effort is made to penetrate it, however, it becomes clear, to us at least, that, where coherent assertions are being made at all, these are either false or trivial.
Academic status based on what seems to us to be little more than semi-intelligible attacks upon the values of reason, truth, and scholarship is not, we submit, sufficient grounds for the awarding of an honorary degree in a distinguished university.
And consider Chomsky's point of view (video, transcription):
It's all very inflated, you know a lot of prestige and so on – it has a terrible effect in the Third World [this part just can't be stressed enough]. In the First World, rich countries, it doesn't really matter that much. So if a lot of nonsense goes on in the Paris cafés or Yale comparative literature department – well, okay. On the other hand in the Third World, popular movements really need serious intellectuals to participate. And if they're all ranting postmodernist absurdities... well, they're gone. I've seen real examples – could give them to you.
But – so there is that category. And it’s considered very left wing, very advanced. Well, some of what appears in it, actually makes sense. But when you reproduce it in monosyllables [legible text], it turns out to be truisms. So yes, it is perfectly true that when you look at scientists in the West, they’re mostly men. And it’s perfectly true that women have had a hard time breaking into the scientific fields. And it’s perfectly true that there are institutional factors determining how science proceeds that reflect power structures. I mean ALL of this can be described literally in monosyllables, and it turns out to be truisms when you look at it. On the other hand, you don’t get to be a respected intellectual by presenting truisms in monosyllables.
Consider how Postmodernism has been used by the Right-wing recently (examples here, here, here, here and here), despite most still seeming to believe it's a "Left-wing movement". Of course, that's nothing new. Consider, for instance, Benito Mussolini's quote:
If relativism signifies contempt for fixed categories and those who claim to be the bearers of objective immortal truth, then there is nothing more relativistic than Fascist attitudes and activity. From the fact that all ideologies are of equal value, we Fascists conclude that we have the right to create our own ideology and to enforce it with all the energy of which we are capable.
Or this one from the great historian, Eric Hobsbawm:
Nevertheless, in some ways I had lost touch with many of the currents of French culture and theoretical discussion after the 1960s, and, although any admirer of Queneau and Perec cannot but be sympathetic to the French intellectual tradition of playing games with language, as French thinkers increasingly moved into the territory of ‘postmodernism’ I found them uninteresting, incomprehensible, and in any case of not much use to historians. Even their puns failed to grip.
Better yet, we can go back a few centuries and recall Schopenhauer's words:
If a man is capable of thinking anything at all, he is also always able to express it in clear, intelligible, and unambiguous terms. Those writers who construct difficult, obscure, involved, and equivocal sentences, most certainly do not know aright what it is that they want to say: they have only a dull consciousness of it, which is still in the stage of struggle to shape itself as thought. Often, indeed, their desire is to conceal from themselves and others that they really have nothing at all to say.
I have pointed out some other critics elsewhere. But what really bugs me is how many philosophers (and philosophy students) insist in seeing nothing wrong with it. The question is: why? Haven't they thought enough about it, and just assume that such a great and fashionable movement "must be right"? They see in it an opportunity for their own individuality and lack of interest in the "greater good"? Have they thought enough, and really believe Postmodernism is the way to the "greater good"? Are they far enough from the "third-world" so as not to see what's going on there? Had any philosopher published his honest views on this point?

PS: All these questions apply not only to philosophers and philosophy students, but also to the users and moderators on this site.

domingo, 30 de julho de 2017

A hipocrisia dos "bons mineiros"

Em Minas Gerais todos dizem "Vai com Deus!", "Fica com Deus!", mas no fundo não acreditam no que estão dizendo. Como sabemos que não acreditam? Porque quase todos têm medo de morrer. São palavras apenas para "mostrar que são bons", e não resultado de uma confiança genuína naquilo que dizem crer. Mas se todos fingem ser bons, como sabem quem é bom e quem não é? Se não estão acostumados a reconhecer uns aos outros sem máscaras, mas apenas sob vernizes "educados"? Se não se importam tanto com o que dizemos, mas sobretudo com a forma como as palavras são ditas? A verdade é que não sabem! Por isso são tão desconfiados quanto os homens e mulheres das cavernas; ou mais, pois no fundo todos sabem que há uma camada extra de falsidade nas relações sociais. É uma terra de hipócritas.

Eu da minha parte uso uma regra prática: quanto mais alguém fala de "Deus", mais eu sei que não é flor que se cheire.

Pesadelo travestido de sonho

"As nações têm seus sonhos, e as recordações de tais sonhos persistem através de gerações e séculos. Alguns deles são sonhos nobres, e outros malignos e ignóbeis. Os sonhos de conquista e de ser mais forte e maior que todos os demais foram sempre sonhos maus, e essas nações têm sempre mais preocupações do que as outras que têm sonhos mais pacíficos. Mas há outros sonhos, sonhos melhores, sonhos de um mundo melhor, sonhos de paz e de nações que vivem em paz umas com as outras, e sonhos de menos crueldade, menos injustiça, menos pobreza, menos sofrimento. Os sonhos maus tendem a destruir os sonhos bons da humanidade, e há animosidade e luta entre os sonhos bons e os sonhos maus. E as gentes lutam por seus sonhos tanto como por suas posses terrenas. E assim os sonhos baixam do mundo das visões ociosas para o mundo da realidade, e convertem-se em força real em nossa vida. Por vagos que sejam, têm os sonhos um modo de ocultar-se e não deixar-nos em paz, até que se hajam traduzido em realidade, como as sementes que germinam debaixo da terra, e que hão de brotar em sua busca de sol. Os sonhos são coisas muito reais."

Lin Yutang. A importância de viver. Tradução de Mário Quintana. Editora Círculo do Livro. Pág. 80.


É assim que são maus os sonhos da "paz imposta à força" há tantos séculos, ainda que pretendam ser sonhos bons. Sua ideia de "paz entre as nações" significa que todas finalmente obedeçam a uma única igreja, que terá então liberdade de mandar para a prisão, forca ou fogueira -- conforme a moda da época -- todos que discordarem de suas teorias porque viram outros valores, valores reais de um amor genuíno e não fingido ou "ensinado", e que tendo os visto jamais aceitarão se calar.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Manual do Pensamento Comum Monoteísta

Primeira regra: negar antes de entender.
Nossa cultura é a melhor do Universo.
Este mundo é temporário.
Não conhecemos outras culturas.
O fim do mundo é bom e necessário.
Devemos levar nossa cultura a quem não perguntou por ela.
Acreditar é melhor que saber.
Para que estudar se não é um dos mandamentos?
A árvore do conhecimento foi a causa do nosso sofrimento.
Não é preciso melhorar, basta se arrepender.
Jesus já pagou por nossos pecados.
Temos incontáveis encarnações para melhorar, pra que a pressa?
Temos compaixão, mas quem vai devolver os bilhões roubados pelos magos das finanças?
Os escravos também têm compaixão, mas ainda são escravos.
Devemos perdoar até os maiores corruptos, ou não seremos perdoados.
Quem vai trazer de volta as espécies extintas quase diariamente?
Se não formos perdoados, para onde vamos?
Quem vai limpar tudo que nossa modernidade polui?
Não é preciso limpar, outra Terra virá.
Deus te ama, mas se não amá-lo de volta sofrerá por toda a eternidade.
É melhor engolir uma contradição do que procurar a verdade.
A verdade vos libertará, mas o que é a verdade?
Verdade virou sinônimo de opinião.
Cada um no seu quadrado.
Mas não era a união que fazia a força?
Mais vale um cordeiro manso a seguir seu pastor que um genuíno primata curioso e forte.
A curiosidade matou o gato.
Os últimos serão os primeiros.
Mas quem tem fome tem pressa.
Somos naturalmente maus, por isso precisamos ser corrigidos, vigiados e punidos.
A Natureza é sábia mas não sabe o que faz.
Deus é perfeito, mas nos criou falhos.
Estudar a Natureza nos afasta da tirania, por isso não é bom para os tiranos.
Animais sociais preferem o bem, mas não somos animais.
Somos à imagem e semelhança do livro que nos governa.
Não conhecemos outros livros e nem queremos conhecer.
O que não está do nosso lado, está do lado do mal.
Estamos do lado do bem, ou acreditamos estar.
A fé é uma mentira que favorece a tirania.
Mas lavamos nossas mãos, pois temos uma fé prepotente e inabalável de que não podemos estar errados.
Amém?

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Tentando entender o que acontece na economia brasileira - Parte 2

Continuando as análises anteriores, temos ainda alguns gráficos a analisar. Mas primeiro, vejamos o que dizem alguns economistas sobre a crise.

Heather Stewart, do jornal britânico Guardian, escreveu em setembro de 2015:

Haldane [Andy Haldane, formulador de políticas bancárias do Banco da Inglaterra] afirma que cerca de 600 bilhões de dólares de capital "saíram de economias afetadas pela crise em direção aos mercados emergentes" logo após a Grande Recessão que afetou os países desenvolvidos devido à crise dos subprime em 2008-09.

Durante os últimos 18 meses, à medida que o Banco Central dos EUA estabeleceu as bases para elevar as taxas de juros, "este ciclo obviamente se inverteu" e cerca de 300 bilhões de dólares de capital fluiu de volta para fora dos mercados emergentes.

"Como antes, onde o dinheiro foi houve crescimento," ele diz. Em vários países, da Turquia ao Brasil, Russia à Malásia, o rendimento dos títulos públicos, que determina a taxa de juros que os governos devem pagar sobre seus débitos, está subindo; o preço das commodities está caindo; a instabilidade política se alastra.

Se o capital saiu das economias emergentes buscando lucros mais altos nos EUA, isso pode explicar boa parte da crise observada no Brasil e em outros países. O difícil é medir essa movimentação do capital.

Pelos índices das bolsas de valores, vemos que, enquanto a Bovespa vinha caindo lentamente desde 2010, os índices Dow Jones e Nasdaq não param de subir, chegando mesmo a ultrapassar os valores atingidos antes das bolhas de 2000 (bolha da Internet) e 2008 (bolha imobiliária). Isso nos leva à pergunta: quanto desse novo aumento é, novamente, mera especulação?

Fonte: https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries (Mercados financeiros e de capitais/Indicadores do mercado de capitais)

Quanto às empresas negociadas na bolsa, vemos uma quase estagnação do valor total desde 2007 (o que significa uma queda, considerada a inflação), bem como uma queda no número de empresas no mesmo período. Além disso, vemos dois "picos invertidos": o primeiro atingindo o ápice na passagem de 2008 para 2009, e o segundo na passagem de 2015 para 2016. A razão do primeiro parece obviamente a crise global, enquanto o segundo talvez seja explicado pela crise política em torno do impeachment da presidente Dilma.


Fonte: https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries (Mercados financeiros e de capitais/Indicadores do mercado de capitais)

Quanto ao aumento dos juros pelo Federal Reserve (o Banco Central dos EUA), os gráficos disponíveis mostram um leve aumento dos chamados Bank Discount e Coupon Equivalent, para um e seis meses.

Fonte: https://www.treasury.gov/resource-center/data-chart-center/interest-rates/Pages/default.aspx


Infelizmente explicar o que significam esses jargões (Bank Discount e Coupon Equivalent) está além do meu conhecimento de economia. Vemos apenas que suas curvas são idênticas às curvas de 1 mês e 1 ano dos gráficos abaixo.


Fonte: https://www.treasury.gov/resource-center/data-chart-center/interest-rates/Pages/default.aspx


Aparentemente, os juros para investimentos de curto prazo subiram de forma mais consistente que os de longo prazo. Numa economia globalizada e instável, talvez este seja o tipo de investimento mais atraente para investidores internacionais? Infelizmente a fonte não mostra os valores reais (descontada a inflação) para os investimentos de curto prazo.

O quarto gráfico dos juros nos EUA mostra os valores nominal e real (descontada a inflação) para os investimentos de longo prazo (a partir de dez anos). O prometido aumento citado por Stewart e Haldane é cada vez menos visível.

Fonte: https://www.treasury.gov/resource-center/data-chart-center/interest-rates/Pages/default.aspx

Outro fator que influencia a movimentação do capital para dentro e fora dos países é o chamado risco-país, no nosso caso o risco Brasil. Sobre isso vamos fazer um parêntesis.

(Uma das instituições que avaliam o risco-país esteve envolvida no escândalo da crise dos subprimes nos EUA em 2008: a J.P. Morgan. Apesar das comprovações de fraude e irresponsabilidade que arruinaram milhões de famílias em diversos países, nenhuma dessas instituições foi punida. Pelo contrário, receberam dinheiro dos contribuintes para quitar suas dívidas. No chamado escândalo de poupança e empréstimo dos anos 1980 -- savings and loan crisis -- 839 pessoas foram condenadas por "crimes do colarinho branco". Nesta crise que começou em 2008 e não tem data para terminar, embora o rombo seja 70 vezes maior,  até onde sei apenas um executivo foi preso. Há alguns filmes contando essa história: Capitalism: A Love Story, de 2009; Inside Job, de 2010; Too Big To Fail, de 2011; The Big Short, de 2015.)

O gráfico abaixo mostra a evolução do risco Brasil desde 1994. Embora a fonte citada seja o IPEA, o mesmo cita ninguém mais, ninguém menos que JP Morgan como sua fonte. Como uma instituição dessas ainda tem credibilidade depois do escândalo de 2008, é algo que escapa ao meu entendimento. Comentário do IPEA: O EMBI+ é um índice baseado nos bônus (títulos de dívida) emitidos pelos países emergentes. Mostra os retornos financeiros obtidos a cada dia por uma carteira selecionada de títulos desses países. A unidade de medida é o ponto-base. Dez pontos-base equivalem a um décimo de 1%.Os pontos mostram a diferença entre a taxa de retorno dos títulos de países emergentes e a oferecida por títulos emitidos pelo Tesouro americano. Essa diferença é o spread, ou o spread soberano. O EMBI+ foi criado para classificar somente países que apresentassem alto nível de risco segundo as agências de rating e que tivessem emitido títulos de valor mínimo de US$ 500 milhões, com prazo de ao menos 2,5 anos.

Fonte: http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=40940&module=M

O comentário do IPEA explica que o risco Brasil (EMBI+) mostra a diferença entre os juros oferecidos pelos títulos públicos brasileiros e dos EUA. Analisando os gráficos anteriores (taxa SELIC, no post anterior, e juros dos EUA, neste post) vemos que o risco Brasil de 1996 a 2001 é praticamente um reflexo da taxa SELIC (infelizmente não temos dados sobre os juros nos EUA para este período). De 2004 a 2007, com a alta dos juros nos EUA, o risco Brasil cai (pouco risco, mas também pouca atratividade: por que especular no Brasil, se a especulação nos EUA rende muito mais?). Então em 2008 os juros nos EUA despencam, e vemos uma leve alta da SELIC, causando um pico pronunciado no risco Brasil. Um leve aumento da SELIC em 2011 causou um incremento mínimo no EMBI+. O aumento da SELIC em 2015 faz subir novamente o risco Brasil, que diminui em seguida (2016) com o aumento dos juros nos EUA. 2002 parece um caso mais complexo: houve uma queda de juros desde o início do ano (veja Bank Discount/Coupon Equivalent 6 meses), que se pronunciou ainda mais no fim do ano. A SELIC teve um grande aumento também no fim do ano. Mas o risco Brasil explodiu (ultrapassando dois mil pontos) ainda no meio do ano. É evidente que outros fatores estão em jogo. Provavelmente, trata-se do medo do "mercado" sobre a possível eleição do então candidato Lula.

Para tentar entender a queda recente no PIB, vejamos os componentes da demanda, ou seja, os fatores que contribuem para o aumento ou retração do PIB. O gráfico abaixo foi copiado do artigo de Bruno Paim, Perfil da dívida das famílias e o Sistema Financeiro Nacional.

Fonte: http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/download/3499/3535

Vemos que o consumo das famílias foi um fator importante no crescimento do PIB entre 2004 e 2014 (algo que deve ser lembrado a quem diz que Lula "apenas se aproveitou dos acertos do seu antecessor, e ainda surfou no boom das commodities"). Depois de 2010 vemos já um desaquecimento da economia, com oscilações na formação bruta de capital fixo ou FBCF -- o capital, em boa parte internacional, que vai até os países mais lucrativos, ou seja, com maiores taxas de juros (os anos de 2003, 2009 e 2012, onde o gráfico de Paim mostra um decréscimo na FBCF, são justamente anos onde observamos uma queda acentuada da taxa SELIC. Esta taxa também caiu entre 2005 e 2007, mas este período representa o início do aumento do preço das commodities, principalmente petróleo, minério de ferro e soja). A queda na FBCF observada em 2014 talvez seja parte do "ciclo invertido" relatado por Andy Haldane no artigo do Guardian citado no início deste texto. Ainda não entendi como as exportações líquidas podem apresentar valores negativos entre 2006 e 2008, quando os dados da nossa balança comercial (segundo o IBGE) mostram mais exportações que importações, pelo menos para 2006 e 2007.

Finalmente, vamos comparar o crescimento do PIB per capita brasileiro com outros grupos de países.

Brasil (em verde) e outros países do Mercosul (Argentina, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru).

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG

Brasil (em verde) e outros países emergentes, na definição do FMI (Argentina, Bulgária, Chile, China, Colômbia, Estônia, Hungria, Índia, Indonésia, Letônia, Lituânia, Malásia, México, Paquistão, Peru, Filipinas, Polônia, Romênia, Rússia, África do Sul, Tailândia, Turquia, Ucrânia e Venezuela).

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG

Os países que menos cresceram em 2015 (na verdade tiveram uma retração do PIB) foram Ucrânia (-9,5%), Brasil (-4,6%) e Rússia (-3,0%). Interessante notar que a Rússia também foi citada por Haldane em relação à elevação das taxas de juros e instabilidade política.

Brasil (em verde) e União Europeia (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda, Portugal, Reino Unido, Suécia, Polônia, República Checa, Hungria, Croácia, Romênia, Bulgária, Dinamarca, Andorra, Mônaco, San Marino, Montenegro e Kosovo)

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG

O país que apresenta um crescimento espetacular em 2014 e 2015 é a Irlanda (não sabemos se é um crescimento real ou um artefato estatístico). O país com um crescimento maior que 20% em 2001 é Kosovo, sendo o primeiro ano da série para este país. Curiosamente, sua declaração de independência (da Sérvia) data de 2008, o que nos faz questionar a credibilidade dessa fonte.

Brasil (em verde) e Zona do Euro (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Holanda e Portugal).

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG

Brasil (em verde) e ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático: Tailândia, Filipinas, Malásia, Cingapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos e Camboja).

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG


Brasil (em verde) e países que têm moeda chamada Dólar (Antigua e Barbuda, Austrália, Bahamas, Barbados, Belize, Bermuda, Brunei, Canadá, Ilhas Cayman, Dominica, Timor Leste, Equador, El Salvador, Fiji, Granada, Guiana, Hong Kong, Jamaica, Kiribati, Libéria, Ilhas Marshall, Estados Federados da Micronésia, Namíbia, Nauru, Nova Zelândia, Palau, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Singapura, Ilhas Salomão, Suriname, Taiwan, Trindade e Tobago, Tuvalu, Estados Unidos e Zimbabwe).

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG

Vemos que, a partir de 2011, a maioria dos países emergentes e do Mercosul cresceram mais rápido que o Brasil. Já na União Europeia, bem como na Zona do Euro, a maior parte dos países cresceram menos que o Brasil até 2013. Os países da ASEAN foram menos atingidos que os demais pela crise de 2008-09, e a maioria cresceu mais que o Brasil a partir de 2011. De 2008 a 2012, o Brasil cresceu mais que os países que usam algum tipo de Dólar, e mostrou um crescimento bem inferior a partir de 2014.

É fácil encontrar longos textos na Internet explicando as razões da crise brasileira que estourou em 2015. A maioria deles, de viés ortodoxo, acusa a política econômica adotada pelo PT (a chamada Nova Matriz Econômica). Talvez estejam certos. Mas perdem alguma credibilidade pelo fato de não considerarem outros fatores internos (como a campanha midiática em favor da instabilidade que levaria ao impeachment e a interrupção quase total das atividades de grandes empresas envolvidas em esquemas de corrupção) e externos (como a queda no preço das commodities, os desdobramentos mundiais da crise de 2008-09 e a fuga de capitais após a propaganda de elevação dos juros nos EUA).

O texto mais detalhado que encontrei, do doutor em economia Marcos Mendes, apresenta um rigor técnico aparentemente impecável. Mas é muito fácil ser convencido por uma argumentação quando não ouvimos os argumentos do outro lado (ainda mais quando somos leigos no assunto). E ainda não encontrei uma explicação didática por parte de algum economista de esquerda e/ou dos proponentes da Nova Matriz Econômica. Talvez eu precise procurar mais, ou talvez seja consequência de um fenômeno apontado por Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI (grifo meu):

As tabelas de distribuição oferecem um ponto de vista mais concreto e palpável sobre a desigualdade social, além de nos conscientizarem sobre a realidade e os limites dos dados de que dispomos para estudar essas questões. Indicadores estatísticos sintéticos como o coeficiente de Gini fornecem, ao contrário, uma visão abstrata e complicada da desigualdade, que impede que nos situemos na hierarquia de noso tempo (exercício sempre útil, sobretudo quando se pertence aos centésimos superiores da distribuição e quando se tem a tendência a se esquecer disso, o que é muito frequente no caso dos economistas).

Se o que estamos assistindo agora for parte de um plano maior para afastar governos de esquerda no Brasil, na América Latina e além, talvez venhamos a descobrir um dia. Mas, como no caso do roubo e destruição da Panair, talvez "um dia" seja tarde demais.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Tentando entender o que acontece na economia brasileira


A crise que estourou em 2015 no Brasil causou, no ano seguinte, o afastamento da presidenta Dilma. A grande mídia, de forma simplista (para não dizer golpista) colocou toda a culpa sobre sua suposta má administração. Mas o que aconteceu, exatamente? Sabemos que o desemprego aumentou e que o dólar subiu. Mas o dólar também havia subido em 2002, quando Lula pela primeira vez apareceu nas pesquisas com grandes chances de ser eleito presidente, e a grande mídia fazia o terrorismo psicológico de que, se ele fosse eleito, “o país iria quebrar”. O dólar então chegou muito perto dos quatro reais (preço de compra R$3,9544 em 22/out/2002, “coincidentemente” cinco dias antes do segundo turno das eleições), e não podemos colocar a culpa “na corrupção do PT”. Em 2015 o dólar voltou à casa dos quatro reais, e nós, que sabemos o tamanho do viés da grande mídia nesse tipo de assunto, precisamos então fazer uma investigação independente, se queremos entender o que aconteceu.

Fonte: http://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/port/ptaxnpesq.asp?id=txcotacao

Vemos que, após o Plano Real (meados de 1994), o valor do dólar foi fixado pelo Banco Central até o final de 1998, passando no início de 1999 a ser regulado pelo mercado (o chamado câmbio flutuante). Além dos picos que já citamos (2002 e 2015), houve uma leve alta durante a crise financeira de 2008 e 2009. Mas qual foi a causa da última alta, que começa a se esboçar já no final de 2014?

Lembro que, enquanto todos falavam da grande crise financeira internacional em 2008 e 2009, o então presidente Lula disse que o que chegava aqui era apenas uma “marolinha”. De fato, com incentivos fiscais para a venda de eletrodomésticos, e principalmente automóveis, nós fugimos da crise por um tempo (ao custo de abarrotar nossas ruas de carros, mas isso é outra história). Finalmente, a partir do final de 2011, o dólar não parou mais de subir. Partindo de cerca de R$1,55 (o mesmo valor antes da crise de 2008), passou a marca dos dois reais em 18/mai/2012, passou os R$2,50 (para venda) em 23/out/2014 (três dias antes do segundo turno das eleições para presidente), e a partir de então teve uma subida vertiginosa, passando de três reais em 6/mar/2015, passando de R$3,50 em 6/ago/2015, e finalmente ultrapassando os quatro reais em 22/set/2015. Na época o processo de impeachment já estava em andamento, e é preciso perguntar: o dólar subiu como resultado de más políticas por parte do governo federal, ou subiu como resultado do (ou mesmo ajuda ao) caos político instaurado então? Ou, se um pouco de cada, quanto de cada?

Um dos fatores que contribui com a variação do dólar é o comércio exterior. Nossas importações renderam menos que o valor gasto com as exportações a partir de 2008/2009 (o chamado déficit comercial), e a diferença se ampliou a partir de 2013.



Fonte: seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=12&op=0&vcodigo=ST59&t=exportacao-bens-servicos-brvalores-correntes

Mas, quando olhamos o volume das principais exportações (soja, petróleo, minério de ferro e carne bovina), vemos que não houve alteração, embora tenha havido uma queda substancial no seu valor (principalmente de petróleo e minério de ferro).


Fonte: http://www.mdic.gov.br/index.php/comercio-exterior/estatisticas-de-comercio-exterior/base-de-dados-do-comercio-exterior-brasileiro-arquivos-para-download

Isso parece ser explicado pela queda repentina e simultânea no preço dessas commodities, como pode ser visto abaixo.

Fonte: http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=global-economic-monitor-(gem)-commodities#

A variação no preço do petróleo merece uma reflexão à parte, mas as demais também pedem uma explicação. Terão sido causadas pelo esfriamento da economia global? Principalmente da economia chinesa? Ainda não sabemos. Mas podemos olhar o quadro mais de longe.

Fontes:
http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=iron-ore&months=360
http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=soybeans&months=360
http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=crude-oil-brent&months=360


E o mesmo gráfico, corrigindo o valor do dólar pela inflação.

Fontes:
http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=iron-ore&months=360
http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=soybeans&months=360
http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=crude-oil-brent&months=360

http://www.usinflationcalculator.com/inflation/consumer-price-index-and-annual-percent-changes-from-1913-to-2008/

Vemos uma alta no preço da soja e do minério de ferro de 2008 a 2014, que podem estar relacionados ao aumento da demanda (chinesa, principalmente?) ou à alta (artificial?) do dólar. A queda observada parece ter sido, portanto, um retorno à normalidade.

Se as importações se tornaram mais caras que as exportações, como evitar a alta do dólar, que passou a sair muito mais do que entrar no país? Um caminho seria usar as reservas cambiais para abastecer o mercado, outro é pedir empréstimos, aumentando a dívida pública. Pelos dados abaixo, parece evidente que o caminho tomado foi o segundo. A dívida começou a subir num ritmo acelerado no final de 2015, o que coincide com uma baixa, ainda que relativa, no valor do dólar. Contudo, a mesma estratégia não parece ter sido necessária em 2002, o que nos leva a perguntar sobre as diferenças entre as duas ocasiões.


Fonte: https://www.bcb.gov.br/ftp/notaecon/DemonstrReservas_M.zip
Fonte: https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/seriehistDLSPBruta2007.asp - https://www.bcb.gov.br/ftp/notaecon/Divggp.zip


Aqui vemos uma relação inversa entre a dívida pública e o PIB: enquanto a primeira aumentou, o ritmo de crescimento do segundo caiu. Expressando a dívida como uma fração do PIB, temos o próximo gráfico.

Fonte: https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/seriehistDLSPBruta2007.asp - https://www.bcb.gov.br/ftp/notaecon/Divggp.zip


Embora a dívida pública tenha aumentado, como proporção do PIB, ainda podemos dizer que está em um patamar perfeitamente manejável, se a compararmos com as dívidas de outros países (exs) ou mesmo do Brasil antes e nos primeiros anos do governo Lula. Outra questão que se apresenta é: qual a mudança do PIB no período estudado?

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.CD

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.PP.CD


Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.KD.ZG

O PIB diminuiu 3,8% de 2014 para 2015, e outros 3,6% de 2015 para 2016. Essa sequência de duas baixas consecutivas só foi verificada no Brasil nos anos de 1930 e 1931 (logo após a crise de 1929), quando os recuos foram de 2,1% e 3,3%, respectivamente. Interessante notar que a crise de 2008 e 2009, que afeta muitos países ainda em 2017, já foi comparada à crise de 1929, sendo considerada pior em certos aspectos. Conseguimos hoje adiar seus efeitos por mais tempo que no início do século XX?

Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD


Vemos aqui o PIB de diferentes países como parte do PIB mundial. Os países são BRA Brasil, CHN China, DEU Alemanha, FRA França, GBR Grã-Bretanha, JPN Japão e USA Estados Unidos.


Fonte: http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD

Aqui o mesmo gráfico anterior, mas com o PIB per capita em relação ao PIB per capita mundial.

Vejamos outros indicadores.

Fontes:
IBGE, Pesquisa Mensal de Emprego dez/1991 a dez/2002 - http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=7&op=0&vcodigo=FDT10&t=taxa-desemprego-aberto-pessoas-15-anos
IBGE, Pesquisa Mensal de Emprego, 2002/mar a 2016/jan - http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=7&op=0&vcodigo=PE63&t=taxa-ocupacao


O desemprego, que havia aumentado de 5-6% para 7-8% (na antiga métrica) em 1998, vinha caindo desde 2004 até 2014 (as cores ilustram diferentes metodologias). Em 2015 deu um salto impressionante (de 4,5% para 8%), e sabemos que em 2016 aumentou ainda mais. Isso está diretamente relacionado com a queda do PIB, principalmente nos setores industrial e de serviços.

Fontes:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/defaulttabelas.shtm - ftp://ftp.ibge.gov.br/Contas_Nacionais/Contas_Nacionais_Trimestrais/Tabelas_Completas/Tab_Compl_CNT.zip
https://www.dieese.org.br/cesta

Os dados oficiais oferecem uma decomposição do setor industrial. O valor do PIB foi dividido pelo custo da Cesta Básica, como forma de remover o efeito da inflação.

Fontes:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/defaulttabelas.shtm - ftp://ftp.ibge.gov.br/Contas_Nacionais/Contas_Nacionais_Trimestrais/Tabelas_Completas/Tab_Compl_CNT.zip
https://www.dieese.org.br/cesta

Vemos que a indústria de transformação e extração mineral foram as mais afetadas, seguidas pela construção civil. A tragédia do rompimento da barragem de Bento Gonçalves, perto da cidade de Mariana em Minas Gerais, ocorrida no dia 5/nov/2015, parece explicar apenas uma pequena parte do problema.

Fontes:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/defaulttabelas.shtm - ftp://ftp.ibge.gov.br/Contas_Nacionais/Contas_Nacionais_Trimestrais/Tabelas_Completas/Tab_Compl_CNT.zip
https://www.dieese.org.br/cesta

Na área de serviços, os setores mais afetados foram o comércio, o setor imobiliário, de transportes e outros serviços. Interessante notar que o setor de intermediação financeira e seguros foi o único que cresceu durante a crise, o que leva à óbvia pergunta do seu papel na causa da mesma (principalmente considerando o peso do setor em outras crises pelo mundo, como o caso do Lehman Brothers, entre outros).

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Índices de Preços, Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor. - ftp://ftp.ibge.gov.br/Precos_Indices_de_Precos_ao_Consumidor/IPCA/Serie_Historica/ipca_SerieHist.zip

A inflação refletiu a crise, ultrapassando os 10% ao ano no final de 2015. Com o prolongamento da recessão, observamos depois a queda da inflação, num quadro que pode se transformar em deflação, caso a recessão se prolongue ainda por mais tempo.

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Índices de Preços, Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor. - ftp://ftp.ibge.gov.br/Precos_Indices_de_Precos_ao_Consumidor/IPCA/Serie_Historica/ipca_SerieHist.zip

Analisando mês a mês, vemos que dois picos de inflação, no início e no fim de 2015, causaram o acúmulo observado no final do ano. Esse tipo de oscilação (inflação alta no verão e baixa no inverno) aconteceu durante todo o período analisado (desde 1996), alcançando em 2015 um nível apenas meio ponto percentual acima do que vinha sendo registrado nos últimos anos. Mas uma pequena inflação extra mensal se acumula numa inflação extra perceptível ao final de um ano.

Fonte: https://www.bcb.gov.br/Pec/Copom/Port/taxaSelic.asp

A taxa básica de juros (SELIC), embora não tenha alcançado os valores em vigor antes de 2006, subiram o suficiente para poder responder por parte da crise, bem como pelo vigor do setor financeiro em meio à crise generalizada.

Fonte: http://radames.manosso.nom.br/palavras/politica/o-valor-real-do-salario-minimo-nos-ultimos-vinte-anos/

O salário mínimo (corrigido pelo INPC – Índice Nacional de Preços ao Consumidor) mostra um ganho real ao longo de todo o período analisado. Porém sua variação não é a mesma durante cada governo.

R$316,19 em abr/1995 para R$448,37 em mar/2003 = R$132,18 em 96 meses = R$1,3769/mês (FHC)
R$448,37 em mar/2003 para R$756,08 em fev/2011 = R$307,71 em 96 meses = R$3,2053/mês (Lula)
R$756,08 em fev/2011 para R$883,70 em dez/2016 = R$127,62 em 71 meses = R$1,7975/mes (Dilma)

Usamos como ponto de corte o mínimo valor antes do próximo aumento nominal do salário mínimo, perto da data de posse de cada presidente. Intuitivamente, essa medida parece menos sujeita a variações aleatórias, além de que os primeiros meses de cada mandato parecem ser muito mais influenciados pela “herança” da gestão anterior do que pelas ações de cada governo.

Podemos ainda observar o poder de compra do salário mínimo em relação à cesta básica.




Fontes:
http://radames.manosso.nom.br/palavras/politica/o-valor-real-do-salario-minimo-nos-ultimos-vinte-anos/
https://www.dieese.org.br/cesta/

No segundo gráfico fica visível o efeito da inflação de 2015/2016 sobre o poder de compra dos salários.

Como começamos com a variação do dólar no Brasil, vou inserir por último um gráfico - bastante confuso - que mostra a variação do dólar em vários países, a partir de 1971. É útil para avaliar variações causadas pelo dólar em si, e não pela política e economia deste ou daquele país.

Fonte: https://www.federalreserve.gov/releases/H10/hist/

E o preço do ouro em diferentes moedas, como contrapartida ao entendimento (ou tentativa de entendimento) das variações do dólar.

Fontes:
http://www.gold.org/statistics
http://www.gold.org/download/file/3022/Prices.xlsx
https://br.investing.com/commodities/gold-historical-data?cid=964524

Números tendem a ser menos enviesados que discursos, e assim temos agora um quadro aproximado do que tem acontecido no Brasil nas últimas décadas. Para entender corretamente, ainda precisamos avançar no cenário global, para tentar explicar as flutuações do dólar, dos investimentos, do comércio exterior, do preço das commodities e outras variáveis que afetam diretamente a nossa economia e, consequentemente, os ventos da política. Não tendo formação específica na área, ainda é difícil entender a relação entre todas essas variáveis, mas acho que posso afirmar que já é um começo.

Comentários, sugestões e críticas são muito bem vindas.