sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Crítica ao posmodernismo dos textos de Boaventura de Sousa Santos e outros

O posmodernismo é um fenômeno complexo, que se afirma como sendo “libertário” e “progressista”, mas que parece ter agido mais no sentido contrário, aumentando o individualismo, fragmentando os movimentos sociais, devolvendo o poder a instituições conservadoras, mais notadamente as igrejas. Embora se mostre aparentemente diverso, e mesmo “indefinível”, traz alguns pontos de fácil identificação:

  • Textos de difícil leitura, que escondem a obviedade de alguns argumentos para dar a seus autores a fama de “grandes pensadores”, e fornecem a argumentos frágeis a desculpa do “mas não foi isso que eu quis dizer”. Se quer mesmo ser libertário e progressista, por que não escrever com a clareza praticada por autores como Voltaire, Schopenhauer, Brecht, Chomsky, Piketty?
  • Ataque à “racionalidade instrumental”, ou simplesmente à razão (descrita como “razão ocidental”, como se a previsão de eclipses, a medida de áreas de plantio ou a soma e a multiplicação fossem exclusivas à cultura ocidental). Evidente que um povo que não sabe usar a razão é vítima fácil de manipuladores, sejam políticos ou religiosos – geralmente os dois ao mesmo tempo. Longe de emancipar as populações tradicionais, a ignorância científica apenas as torna presas fáceis para os poderosos que as têm dominado desde muito antes de Descartes.
  • Relativização e fragmentação da Realidade, transformação do conceito “opinião” em “verdade”. Vem daí o ditado hoje popular que diz que “cada um tem a sua verdade”. Numa selva de ideias onde cada pequeno grupo luta por suas próprias causas, de maneira desorganizada e sem critérios mínimos comuns, é evidente que a direita política, organizada e atuando de forma coordenada, leva larga vantagem. O resultado disso é o recrudescimento religioso e o retorno do fascismo, além da degradação ambiental, criminalização de práticas ancestrais, consumismo e isolamento social que vemos crescer a cada dia.

Tendo lido numa disciplina universitária alguns textos de Boaventura de Sousa Santos, usarei alguns trechos para tentar evidenciar esse tipo de pensamento, muitas vezes escondido nas entrelinhas. Nem por isso causam menos estrago à juventude que anseia por mudança, mas não encontra na literatura obrigatória de seus cursos de formação sequer o mínimo para aprenderem a se expressar com clareza, muito menos identificar e agir efetivamente contra os verdadeiros inimigos.

Os trechos abaixo são um trabalho ainda em produção. Futuramente pretendo ampliá-los (há muito material pra isso) e organizá-los de forma mais clara e acessível. Os números entre colchetes denotam a página onde o trecho citado se encontra.


A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (2006)

Cap. 3
A Ecologia de Saberes


“Mesmo que a natureza não existisse em sociedade – e existe – o conhecimento sobre ela existiria.” [137]

A sociedade é parte da Natureza, não o contrário!


“(...) período de transição paradigmática que designei como de transição entre a ciência moderna – que identifiquei com a mecânica clássica, cartesiana e newtoniana, positivista (determinista, reducionista e dualista) – e uma ciência emergente que designei por ciência pós-moderna.” [139]

A “ciência moderna” é probabilística. Professores que fazem lavagem cerebral em seus alunos com textos como os de Santos sequer sabem o que é o “p” fundamental em artigos científicos.


“[criticando a sociobiologia] Para estes pesquisadores, no momento em que se descobrir a interação entre a evolução cultural e a evolução genética, as leis gerais a que se chegar terão vigência em todas as disciplinas. (...) Confirmar-se-á então que todos os fenômenos vivos obedecem às mesmas leis da física e da química já que os níveis mais altos da organização da vida (incluindo a cultura e a sociedade) decorrem de fenômenos de agregação que ocorrem nos níveis mais baixos (biológicos e físico-químicos). (...) As ciências sociais serão a prazo uma disciplina das ciências naturais.” [140]

1. Já não está confirmado? Quais organismos obedecem a leis físicas e químicas diferentes?

2. Ignora por completo as chamadas propriedades emergentes: embora a biologia ajude a explicar fenômenos sociais (como a química ajuda a explicar fenômenos biológicos), a sociologia jamais será reduzida à biologia, assim como a biologia nunca foi reduzida à química.


“Não faz sentido, assim, a oposição entre o real e o construído (...). O que existe – conhecimento, objetos tecnológicos, edifícios, estradas, obras culturais – existe porque é construído.” [149]

E o uirapuru, a tartaruga, a baleia, foram construídos? Ou simplesmente não existem?


A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência (2000)

Cap. 1
Da ciência moderna ao novo senso comum

“Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do conhecimento vulgar, são ilusórias.” [62]

Podem ser ilusórias. Se nossos sentidos fossem ilusórios (ou seja, fossem sempre ilusórios), não teriam evoluído em primeiro lugar.



A biologia é sempre ignorada pelos posmodernos (a não ser quando é para criticá-la como "malvada" e citar apenas casos dispersos de má ciência, como Josef Mengele). Thomas Kuhn, autor de A Estrutura das Revoluções Científicas (livro que dá fundamento a boa parte do posmodernismo), fala apenas de física. Ernst Mayr o criticou duramente em seu livro Isto É Biologia, mas quem o leu? Quem o cita?

“A primeira variante – cujo compromisso epistemológico está bem simbolizado no nome de ‘física social’ com que inicialmente se designaram os estudos científicos da sociedade – parte do pressuposto de que as ciências naturais são uma aplicação ou concretização de um modelo de conhecimento universalmente válido e, de resto, o único válido.” [65, por que não “biologia social”?]

“Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna, um rombo, aliás, mais importante do que o que Einstein foi subjetivamente capaz de admitir.” [68, Darwin ignorado]


Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vêm demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento. A partir daqui é possível não só questionar o rigor da matemática como também redefini-lo enquanto forma de rigor que se opõe a outras formas de rigor alternativo, uma forma de rigor cujas condições de êxito na ciência moderna não podem continuar a ser concebidas como naturais e óbvias.” [70]

1. O rigor da ciência moderna se fundamenta no fato de edifícios de vinte andares, elevadores, aviões, carros, ônibus e trens-bala serem usados com segurança por milhões de pessoas todos os dias.

2. Mas 1+1 = 2 está tão longe de Gödel quanto o movimento dos animais está de Einstein.

3. No fundo o que Santos quer – e consegue – ainda que sem expressá-lo diretamente, é devolver o poder à igreja. Não aos índios, negros, mulheres, ambientalistas, homossexuais, mas às instituições religiosas, donas de TVs, estúdios de cinema, rádios, editoras, gráficas, universidades, jornais, etc. Sem a ciência moderna para questionar, em pé de igualdade, o discurso teocrático, assistimos hoje ao retorno da religião monoteísta e sua dominância sobre a política e a moralidade. Assistimos à ascensão do fascismo pelo enfraquecimento da esquerda. O próprio Iluminismo, que enfrentou o dogmatismo cristão pela primeira vez em mil anos, é questionado por estudantes de ciências humanas que se acreditam perfeitamente libertários e democráticos.


“Depois da euforia cientista do século XIX e da consequente aversão à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo (...)” [71]

Da estante de um dos meus orientadores durante a graduação em biologia, peguei emprestado e li dois livros interessantíssimos: The Phylosophy of Evolution, de Ronald Good, e Philosophy of Biology, de Elliott Sober.
Isso ilustra como o “positivismo” retratado pelos posmodernos é um espantalho, uma caricatura de “má ciência” usada para atacar a “boa ciência”.


“Para Ruth Hubbard, a aceitação tão ampla da teoria de Darwin assenta, por um lado, no fato de ser uma teoria histórica e materialista, congruente com o ambiente intelectual do tempo, e, por outro lado, no fato de ser uma teoria intrinsecamente otimista que se adequava bem à ideologia meritocrática e individualista encorajada pelos êxitos do mercantilismo inglês, do capitalismo industrial e do imperialismo.” [86]

Ora, a evolução biológica por seleção natural, chamada “darwinismo”, foi menos aceita justamente nos países monoteístas, os mesmos que tiveram mais êxito no mercantilismo, capitalismo e imperialismo.


“Os macacos e os símios são, assim, uma das matérias-primas a partir das quais o homem ocidental constrói a imagem de si próprio como ser natural separado da natureza. Por isso, a primatologia é, no fundo, um conjunto de metáforas ou histórias sobre a origem e a natureza do homem, um discurso ocidental sobre a ordem social.” [86]

Ora, a construção do homem ocidental como “ser separado da natureza” não é uma invenção da ciência moderna, muito menos da primatologia, mas um mito bíblico. A primatologia, pelo contrário, mostra os seres humanos como parte da Natureza.


“Enquanto a primatologia ocidental considera fundamental a distinção entre homem e natureza, a primatologia japonesa assenta na ideia de uma continuidade e de uma unidade essencial entre seres humanos e animais.” [87]

Não sou japonês, e durante os cinco anos de graduação em biologia, jamais encontrei nenhuma “distinção fundamental” entre os humanos e a Natureza, muito pelo contrário, o que vi foi justamente a continuidade e unidade essencial entre nós e os outros animais. Se o Ocidente teima em ver os humanos como “não-animais”, isso se deve ao dogmatismo monoteísta, e não à ciência ocidental.


“O etnocentrismo ocidental, que acima reconhecemos na teoria da evolução de Darwin, desdobra-se em androcentrismo nas suas concepções sobre as relações entre os sexos. O reino animal está cheio de machos avidamente promíscuos em perseguição de fêmeas que se mantêm passivas, lânguidas e expectantes até escolherem um parceiro, o mais forte ou o mais bonito. Este sexismo científico prolonga-se na sociobiologia, sobretudo nas explicações dadas para as assimetrias entre os sexos.” [88]

As diferenças entre os sexos no reino animal são fonte de profunda sabedoria. Há machos que cuidam da prole, fêmeas promíscuas, homossexualidade, bissexualidade, etc. O autor apenas faz o recorte que lhe interessa.


“Os estudos feministas, sobretudo os dos últimos vinte anos, tornaram claro que, nas concepções dominantes das diferentes ciências, a natureza é um mundo de homens, organizado segundo princípios socialmente construídos, ocidentais e masculinos, como os da guerra, do individualismo, da concorrência, da agressividade, da descontinuidade com o meio ambiente.” [88]

É incrível como Santos não cita uma única vez o papel do monoteísmo judaico, e consequentemente o cristão, no machismo dominante na sociedade ocidental. Pelo contrário, sempre que cita a religião é para colocá-la como “alternativa válida” à ciência moderna. Por que não citar o feminismo de Uta Ranke-Heinemann expresso em seu livro Eunucos pelo Reino de Deus? Por que não citar passagens da Bíblia, tanto do Antigo como do Novo Testamento, como Genesis 2:18, “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele” ou Efésios 5:23, “Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja”? Por que não cita o fato do deus judaico ser chamado de “Senhor dos Exércitos” mais de 200 vezes na Bíblia inteira? Por que não compara o monoteísmo judaico-cristão com outras mitologias, como por exemplo o Dao De Jing, que diz no capítulo 28: “Conheça seu lado masculino, proteja seu lado feminino”? Não, para ele tudo de ruim da nossa sociedade veio da ciência moderna, e é esta unicamente que ele ataca.


“A transformação da natureza num artefato global, graças à imprudente produção-destruição tecnológica, e a crítica epistemológica do etnocentrismo e androcentrismo da ciência moderna, convergem na conclusão de que a natureza é a segunda natureza da sociedade e que, inversamente, não há uma natureza humana porque toda a natureza é humana. Assim sendo, todo o conhecimento científico-natural é científico-social. Este passo epistemológico é um dos mais decisivos na transição paradigmática que estamos a atravessar. É também um passo particularmente difícil.” [89]

Alguém falou em antropocentrismo?



Epistemologias do Sul (2009)

Cap. 1
Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes


“No campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia.” [33]

Filosofia sem ciência enxerga tão mal quanto a ciência sem filosofia. Isso já é sabido há muito tempo, bem antes dos ataques posmodernos à “ciência moderna”. Ao mesmo tempo, o autor busca fortalecer a teologia, geralmente interpretada como o estudo do deus judaico-cristão. Os povos indígenas do Alto Rio Negro denominam o estudo de suas divindades, bem como do restante da Natureza, de mitologia, uma categoria que reúne o que os brancos separam em ciência, religião, filosofia, teoria, prática, etc. O autor fala tanto dos povos indígenas, mas permanece usando o termo teologia, não sabemos se inconscientemente. Da mesma forma, fala da emancipação e do fim das opressões, mas continua usando os termos homem e homens quando quer falar de todas as pessoas.


“O que [as teorias do contrato social dos séculos XVII e XVIII] dizem é que os indivíduos modernos, ou seja, os homens metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado de natureza para formarem a sociedade civil. O que silenciam é que, desta forma, se cria uma vasta região do mundo em estado de natureza, um estado de natureza a que são condenados milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidade de escaparem por via da criação de uma sociedade civil. A modernidade ocidental, em vez de significar o abandono do estado de natureza e a passagem à sociedade civil, significa a coexistência da sociedade civil com o estado de natureza, separados por uma linha abissal com base na qual o olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e declara efetivamente como não-existente o estado de natureza.” [36]

1. Condenados? Escaparem? Como se os povos indígenas desejassem fugir das terras que ocupam e vir morar em nossas cidades sujas, barulhentas e violentas. “Vocês brancos não têm alma”, já relatou Jorge Pozzobon, depois de conhecer alguns povos indígenas.

2. Ainda bem que li Darcy Ribeiro (Os Índios e a Civilização) e Helmut Sick (Tukani: entre os animais e os índios do Brasil Central, que me contaram a história da relação entre a sociedade brasileira e os povos indígenas, desde os tempos do SPI e a matança desenfreada de “índios”, passando por Marechal Rondon, que teria declarado “morrer se preciso for, mas não matar nenhum índio”, até os tempos da FUNAI atuais. Se dependesse dos textos como os de Sousa, leria quilômetros de palavreado raso sem aprender nada sobre o que de fato aconteceu. O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961, quando a “ciência moderna” já sabia muito sobre os índios, o bastante para concluir que tinham, sim, alma (o que foi negado por séculos por religiosos interesseiros), e que mereciam um espaço para existirem em seu “estado de natureza”, ou seja, da forma como bem desejam.


“O outro lado da linha [ou seja, povos nativos de diferentes continentes] alberga apenas práticas incompreensíveis, mágicas ou idolátricas [do ponto de vista do “conhecimento moderno”]. A completa estranheza de tais práticas conduziu à própria negação da natureza humana dos seus agentes. Com base nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade humana, os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os selvagens eram sub-humanos.” [37]

É sério que ele classifica os dizeres de humanistas dos séculos XV e XVI como “conhecimento moderno”? Mesmo Darwin, que viu primeiro as diferenças entre povos não europeus e ele mesmo (ao contrário de Wallace, que notou logo as semelhanças), escreveu sobre a delicada questão das raças humanas: “o mais pesado dos argumentos contra tratar as raças humanas como espécies distintas é que há gradações entre elas (...) e é impossível descortinar entre elas claros traços distintivos. (...) Se [um naturalista] for prudente, acabará por reunir todas as formas gradativas numa só espécie, dizendo a si mesmo que não tem o direito de denominar objetos que não pode definir.” (A descendência do homem. 1871). Este é o raciocínio criterioso e precavido de um grande cientista, não os espantalhos acusados de “certezas” e “reducionismos” criticados pelos posmodernos. Já Wallace, que vislumbrou o fenômeno da seleção natural quase ao mesmo tempo que Darwin, escreveu em 1863sobre sua estada entre povos nativos da Polinésia: “Ao partir (...) acreditei que, globalmente, a minha estadia entre este povo simples e de boa natureza foi causa de prazer e benefício para ambas as partes.” Em relação aos povos da Amazônia, Wallace também mostrou uma disposição benevolente, “admirando como tinham desenvolvido o engenho necessário para sobreviverem em meio tão adverso.” [https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/AP26.27.06_antoniobracinha] Comparemos as posições desses dois grandes cientistas com a visão predominante entre religiosos fundamentalistas no sul dos Estados Unidos, que fizeram uma guerra para garantirem o seu direito de possuir escravos (a Guerra de Secessão, entre 1861 e 1865). E os posmodernos em geral vêm criticar a “ciência moderna” enquanto defendem a teologia? É muita manipulação! No Brasil de hoje, deputados conservadores e extremamente religiosos são os primeiros a tentarem flexibilizar a definição de trabalho escravo, para aumentar o lucro do empresariado. Alguns dirão que esses deputados “são religiosos da boca pra fora”, mas não foi sempre esta a razão de ser da teologia? Encontrar argumentos racionais para justificar o status quo?


“Uma concepção pós-abissal de marxismo (em si mesmo, um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as população descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capitalismo global.” [52]

Para mim, a ausência de aspas ao redor de “descartáveis” (e em vários outros pontos do texto) é extremamente constrangedora. Como quando o próprio autor usa “homens” para se referir a “humanos”, ou quando um progressista usa “americanos” ou “norte-americanos” para se referir a estadunidenses.


“o pensamento pós-abissal é um pensamento não-derivativo, envolve uma ruptura radical com as formas ocidentais modernas de pensamento e ação. No nosso tempo, pensar em termos não-derivativos significa pensar a partir da perspectiva do outro lado da linha [por exemplo, os povos indígenas], precisamente por o outro lado da linha ser o domínio do impensável na modernidade ocidental.” [53]

1. Se as “formas ocidentais modernas de pensamento” estão na origem do poder do Ocidente, essa ruptura não significa abrir mão da luta pelo poder? Em outras passagens ele fala de unir outros conhecimentos ao conhecimento ocidental, aqui ele já fala de “ruptura radical”. De fato, a segunda perspectiva deve ser predominante, considerando o completo analfabetismo científico que domina a maior parte dos estudantes de ciências humanas.

2. É no mínimo curioso ele falar sobre “pensar a partir da perspectiva do outro lado” e não citar as palavras de um único indígena.


“a copresença radical pressupõe ainda a abolição da guerra, que, juntamente com a intolerância, constitui a negação mais radical da co-presença.” [54]

Enquanto Thomas Piketty apresenta uma solução prática (ainda que difícil) ao problema da desigualdade econômica crescente no capitalismo, enquanto Karl Marx e Mao Zedong propõem soluções práticas para a dominação capitalista, enquanto Gandhi apresenta soluções práticas para a colonização britânica na Índia e o racismo na África do Sul, este autor não tem nada além de belas palavras, miragens adocicadas que nada trazem de solução. Pelo contrário, o domínio atual dessas ideias serviu apenas para dividir e assim enfraquecer a esquerda, agora ignorante da ciência – a única força poderosa o bastante para vencer o dogmatismo religioso – e por isso mesmo refém de poderosas organizações empresariais internacionais, tanto religiosas como não-religiosas. Por exemplo, a ciência já havia mostrado que a homossexualidade é parte integrante da diversidade sexual humana (e também de outras espécies); hoje, a histeria religiosa fala de “ditadura gay” e de “kit-gay”, ganha espaço na mídia conservadora e vence as eleições de 2018, colocando um ultraconservador e sua equipe de coronéis e bispos no poder de uma das maiores nações do planeta. Quando é que a esquerda vai perceber que vem sendo enganada há décadas? Precisamos de mais conhecimentos científicos, não de menos! Precisamos de intelectuais dando nome aos bois, não pintando paisagens agradáveis à vista! Como diz o Dao De Jing, 81: “Palavras confiáveis não são belas; palavras belas não são confiáveis.”


“No período de transição que iniciamos, no qual resistem ainda as versões abissais de totalidade e unidade, provavelmente precisamos, para seguir em frente, de uma epistemologia geral residual ou negativa: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral.” [54]


Ele está, idealisticamente, fugindo do consenso e da possível união dos povos, e quer “abolir” a guerra?


“Por um lado, a ideia de diversidade sociocultural do mundo que tem ganhado fôlego nas três últimas décadas e favorece o reconhecimento da diversidade e pluralidade epistemológica como uma das suas dimensões.” [55]

Darwin, o “imperialista inglês” (na visão do autor), já havia reconhecido essa diversidade, razão pela qual empreendeu uma detalhada pesquisa, cujos resultados publicou em seu livro “A expressão das emoções no homem e nos [outros] animais”. Mesmo Voltaire, um século antes, já o reconhecera ao escrever seu belíssimo “Tratado sobre a tolerância”.Dois livros, diga-se de passagem, de leitura agradável e acessível, além de verdadeiramente profundos.


Por outro lado, se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do seu tempo, talvez uma das mais bem consolidadas premissas do pensamento abissal seja, ainda hoje, a da crença na ciência como única forma de conhecimento válido e rigoroso”. [55]

Eu nunca vi um cientista de verdade se expressar dessa forma (“a ciência é o único conhecimento válido”), até porque cientistas estão sempre indo às florestas tropicais perguntar aos índios sobre plantas medicinais que lhes permitam patentear novos medicamentos. Agora, que a ciência é mais rigorosa de maneira geral que outras formas de conhecimento, acho que nenhum cientista discordaria. O que eu gostaria de ver mesmo é autores posmodernos questionarem a Tabela Periódica, e afirmarem que a teoria de “terra, fogo, água e ar” é igualmente válida (ou igualmente útil). Não, eles preferem se restringir a zonas mais nebulosas do conhecimento, onde suas teorias generalizantes sobre caricaturas da ciência possam enganar os desavisados.


“[Falando de “povos (...) parceiros da resistência ao capitalismo global”] Em termos geopolíticos, trata-se de sociedades periféricas do sistema mundial moderno onde a crença na ciência moderna é mais tênue, onde é mais visível a vinculação da ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e imperial, e onde outros conhecimentos não científicos e não-ocidentais prevalecem nas práticas quotidianas das populações.” [55]

1. É interessante a associação que ele faz entre crença e ciência. De fato, a quem não entende como a ciência funciona, só resta acreditar. Mas o projeto Iluminista (“positivista”) de educação implica justamente ensinar o que é e como funciona o método científico, e não fazer uma doutrinação de caráter religioso.

2. O projeto de dominação colonial e imperial do Ocidente sempre foi pautado na Bíblia judaico-cristã! Ainda hoje são igrejas, e não cientistas, que eliminam a autoridade dos pajés e destroem lentamente as culturas indígenas. Numa grande capital brasileira de 2018, quase metade das rádios FM são religiosas. No Congresso Federal, a bancada da Bíblia vota em uníssono com as bancadas do Boi e da Bala.

3. Retirada a força da ciência que fazia frente ao messianismo judaico-cristão, o “conhecimento” que passa a prevalecer na prática cotidiana das populações é, cada vez mais, o proselitismo religioso monoteísta, fundamentalista e supersticioso, estelionatário e produtor de bispos bilionários que comandam multidões de milhões de eleitores alienados. Se conseguem fazer isso mesmo nas grandes capitais, o que dizer dos rincões da Amazônia e do Cerrado, biomas que não têm nenhuma chance frente à onda de obscurantismo que esse tipo de texto tem favorecido.


“As intervenções no mundo real que [o conhecimento científico] favorece tendem a ser as que servem os grupos sociais que têm maior acesso a este conhecimento.” [56]

Se no lugar de “conhecimento científico” ele escrevesse “monoteísmo judaico-cristão”, a sentença faria mais sentido. As missas católicas foram rezadas em latim até o meio do século XX! Isso servia ao povo? Ou, pelo contrário, servia àqueles que tinham “maior acesso a este conhecimento”? Os padres podem fazer voto de pobreza, mas almoçam bife com suco de laranja todos os dias. E isso não é nada perto dos pastores e bispos evangélicos que agora se tornam maioria.


“Na ecologia de saberes, enquanto epistemologia pós-abissal, a busca de credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico.” [57]

Descrédito, não. Apenas uma “ruptura radical” (ver trecho em [53]). Este “não implica descrédito” é um caso exemplar do “morde e assopra” típico desses autores. Quando criticados, têm sempre uma porta aberta por onde escapar: “mas não foi isso que eu quis dizer...”


“Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que se têm tornado visíveis através das epistemologias feministas e pós-coloniais e, por outro lado, de promover a interação e interdependência entre os saberes científicos e outros saberes, não-científicos.” [57]

Mais morde e assopra. Isso tudo depois de acusar Darwin de ser um imperialista inglês, de acusar a ciência moderna de estar vinculada aos desígnios de dominação colonial e imperial, de ignorar a imensa riqueza da biologia moderna, atendo-se apenas a pontos extremamente restritos que serviriam para ilustrar a sua tese. Ele seria menos hipócrita se mostrasse como e onde se dá essa “interação e interdependência”, ao invés de só jogar a ideia pro alto, na esperança de que alguém ninguém a apanhe.


“[Em Bali, na Indonésia,] Os sistemas tradicionais de irrigação assentavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e religiosos ancestrais, e eram administrados por sacerdotes de um templo hindu-budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram substituídos precisamente por serem considerados produtos da magia e da superstição, derivados do que foi depreciativamente designado como ‘culto do arroz’.” [60]

Mais uma vez, acusa (com um único exemplo) a “ciência moderna” de fazer o que o monoteísmo tem feito há milênios! A maloca, ou casa comunitária dos povos indígenas, foi proibida por motivos religiosos. O combate a certas drogas foi iniciado com justificativas religiosas. O combate ao aborto, à homossexualidade, ao candomblé e à umbanda, às casas de show e forró, aos bares, aos pajés e ao conhecimento tradicional indígena, à própria demarcação de terras indígenas, todos têm como pano de fundo, ou parte da sua sustentação, o monoteísmo judaico-cristão e sua arma maior: uma interpretação literal (ou nem tanto) da Bíblia.


“(...) um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco séculos, e uma riqueza imensa de experiências cognitivas tem vindo a ser desperdiçada.” [61]

Aqui ele usa uma espécie de oração sem sujeito. Quem causou este epistemicídio? A ciência moderna? Ele não diz. Tudo para não denegrir a “santa religião”, cujos padres eram autorizados a espancar os estudantes indígenas que ousassem usar a língua nativa nas escolas. E que hoje, em tempos de soft power, apenas traduzem os Evangelhos, o Novo Testamento, e finalmente a Bíblia inteira, para a língua nativa, em seus “abençoados” e “idôneos” esforços de alfabetização.


“O que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição canônica das monoculturas do saber sem parar aí, como se essa desfamiliarização fosse a única familiaridade possível.”

Monoteísmos são exatamente isso: monoculturas do saber. Menos para o autor.


Olhando suas referências, decidi calcular quantas vieram de países do Sul, já que “Epistemologias do Sul” é o nome do livro, do qual o autor é um dos organizadores. De um total de 229 referências, não identifiquei a localização de 62. Das 167 restantes, 123 foram publicadas nos Estados Unidos ou Inglaterra e 14 no restante da Europa. Das 30 restantes, 13 foram publicadas no Brasil (todas dele). As outras 17 se dividem em vários países (África do Sul, Argentina, Austrália, Bolívia, China, Colômbia, Índia, Israel, México...). Como fui obrigado a dizer ao professor desta disciplina, quando vi que ele e seu “aluno escolhido” falavam durante o maior tempo da aula, não nos deixando expressar nossos pontos de vista por completo: “a sua prática passa a quilômetros da sua teoria!”



Epistemologia Ambiental
Enrique Leff ?

Cap. 5
Pensar a Complexidade Ambiental


“A crise ambiental, entendida como crise de civilização, não poderia encontrar uma solução por meio da racionalidade teórica e instrumental que constrói e destrói o mundo.” [191]

Licenças poéticas à parte, Leff é poeta ou cientista? Está buscando soluções ou desenhando quadros oníricos? Quer dizer que o mundo é construído pela razão? Rios e mares, florestas, campos e animais, são criações humanas? Ou não são parte do mundo?


“A concepção do mundo não emerge de categorias a priori do pensamento; se os conceitos (espaço, tempo) indicam as condições de possibilidade do ser, da coisa, do mundo, temos de entender as condições do ser e das coisas que têm nos levado a instaurar as concepções do mundo que construíram o mundo. Dessa forma, o ambiente não poderia ser concebido como uma intuição, mas sim como um conceito que abre a possibilidade do ser como construção social. Se as formas de conhecimento pelas quais chegamos a apreender o real estão sujeitas a certas formas ‘humanas’ de entendimento (a espacialidade e a temporalidade dos fenômenos e das coisas), devemos ver como se constroem as categorias conceituais e as ideologias teóricas que internalizam o interesse social nas formas de entendimento da realidade.” [196]

Mais uma vez: o mundo não foi construído. Parte do mundo sim: cidades, estradas, pontes. Mas o mundo vai muito além do mundo humano. Incrível alguém que se diga “especialista em epistemologia ambiental” desprezar essa diferença. Sem falar (outra vez) no estilo pedante e oco: esprema sessenta páginas dessa cantilena e você não enche nem meia dúzia.


Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza
Enrique Leff

Cap. 9
O movimento ambiental pela reapropriação social da natureza: seringueiros, zapatistas, afro-descendentes e povos indígenas da América Latina


“A incorporação de princípios ambientais nas práticas produtivas e nas estratégias políticas para a construção de sociedades sustentáveis só pode definir-se em função do conjunto de valores e propósitos que dão coerência e sentido a uma racionalidade ambiental cultural concreta, com referência à qual se podem avaliar as ações e movimentos sociais que se inscrevem e participam de seu processo de constituição.” [459]

62 palavras e o autor chegou a dizer algo? O que ele disse, exatamente? Mas o ouro mesmo vem na nota 2, ao final do capítulo:

“Como veremos ao longo deste capítulo, embora a consciência ecológica nem sempre seja um imaginário translúcido que se reflete diretamente na discursividade dos movimentos sociais, e, em muitos casos, esta consciência e sua expressão fiquem retardadas por motivos estratégicos que colocam em relevo as demandas por autonomia e direitos culturais nas formas que adota uma política da diferença e do ser cultural na luta de poder com o Estado nacional (é o que ocorre com o movimento dos povos indígenas do México e outros países), em muitos casos, já visíveis, os atores sociais das lutas dos povos indígenas e camponeses estão se constituindo através da reinvenção de identidades e estratégias políticas em uma relação direta com os processos de reapropriação da natureza e de seus processos produtivos.” [509]

Será um recorde mundial? 127 palavras numa única frase para dizer o quê, exatamente? Nossas lutas ambientais dependem mesmo desse tipo de péssimos autores para tornar estudantes desinteressados e com dor de cabeça? Será que esses textos prolixos, repetitivos, cheios de idealismos e pouca direção prática, são ao menos em parte responsáveis pela quantidade enorme de quadros de depressão que vemos nas nossas universidades?

Eu pergunto a esses estudantes, que geralmente defendem com unhas e dentes esses péssimos autores, se já leram autores bons de verdade, autores que, além de escrever com clareza, também dão nome aos bois, propõem soluções concretas, vão direto ao ponto e não precisam queimar “bruxas” (como a ciência moderna) para alcançar os seus fins. Por exemplo:

Bertrand Russell, O Elogio ao Ócio
Voltaire, Tratado sobre a Tolerância
Noam Chomsky, qualquer um dos seus escritos sobre geopolítica
Joan Martínez Alier, O Ecologismo dos Pobres
John Gray, Cachorros de Palha
Thomas Piketty, O Capital no Século XXI
José Eli da Veiga, O Desenvolvimento Agrícola: uma visão histórica; O Brasil rural precisa de uma estratégia de desenvolvimento
Celso Furtado, O Mito do Desenvolvimento Econômico
Gilberto Dupas, O Mito do Progresso
e tantos outros

A resposta, na maioria das vezes, é que nunca leram. Por isso defendem a única “literatura crítica” que conheceram. “Crítica”, entre aspas, porque superficial, cheia de inconsistências e erros crassos, passagens praticamente ilegíveis, ataques exclusivos à “ciência moderna” (poupando instituições massificantes e parasitas como igrejas, veículos de mídia, o capital e seus banqueiros e rentistas), além de obviedades repetidas à exaustão num vocabulário pedante, que ocupa dezenas de páginas para dar a seus autores a fama de “intelectuais” quando, no fundo, são apenas indivíduos de intenção duvidosa que nem têm tanto assim a dizer. Richard Dawkins [em Postmodernism disrobed, 1998] resumiu bem a situação:

Suponha que você é um impostor intelectual sem nada a dizer, mas com fortes ambições de ter sucesso na vida acadêmica, reunir um círculo de discípulos reverentes e ter estudantes ao redor do mundo ungindo suas páginas com um respeitoso marcador amarelo. Qual tipo de estilo literário você cultivaria? Não um lúcido, claro, já que a clareza deixaria exposta sua falta de conteúdo. Provavelmente você produziria algo assim:

Podemos ver claramente que não existe nenhuma correspondência biunívoca entre elos lineares significantes ou de arquiescritura, que dependa do autor, e esta catálise maquínica multirreferencial, multidimensional. A simetria de escala, a transversalidade, o caráter pático não-discursivo de sua expansão: todas essas dimensões nos removem da lógica do meio excluído e nos fortalecem em nossa renúncia ao binarismo ontológico que havíamos criticado previamente.

O trecho citado é do psicanalista Félix Guattari, outro “intelectual” facilmente reconhecido como mais um autor “posmoderno”.


Cultura: um conceito antropológico
Roque de Barros Laraia

Primeira parte
Da Natureza da Cultura ou Da Natureza à Cultura


“Tomemos, como primeiro exemplo, os lapões e os esquimós. Ambos habitam a calota polar norte, os primeiros no norte da Europa e os segundos no norte da América. Vivem, pois, em ambientes geográficos muito semelhantes, caracterizados por um longo e rigoroso inverno. Ambos têm ao seu dispor flora e fauna semelhantes. Era de se esperar, portanto, que encontrassem as mesmas respostas culturais para a sobrevivência em um ambiente hostil. Mas isto não ocorre (...)” [21]

Por que isso seria de se esperar? Na Natureza observamos animais semelhantes encontrando soluções totalmente diferentes para os mesmos problemas. Gorilas são herbívoros; seus (e nossos) primos chimpanzés, carnívoros. Ursos são em geral carnívoros; o urso panda é herbívoro. Mamíferos marsupiais se desenvolveram com tanto sucesso na Austrália quanto os mamíferos placentários se desenvolveram no resto do mundo. Vespas dão carne animal para seus filhotes; abelhas (que são um sub-grupo de vespas), dão néctar extraído das flores. A regra na Natureza é a diversidade de soluções, então, por que “era de se esperar” ausência de diversidade entre culturas humanas isoladas geograficamente? A não ser, claro, que os humanos sejam vistos como algo externo à Natureza...


“A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura.” [24]

1. É impensável, do ponto de vista evolutivo, que seres humanos primeiro se tornassem frágeis, para depois se tornarem inteligentes. Pelo contrário, foi a evolução da inteligência que permitiu o atrofiamento posterior dos músculos. Chimpanzés são primatas extremamente fortes, quem ousa predá-los?

2. Trata-se de uma declaração extremamente antropocêntrica afirmar que somos os “únicos possuidores de cultura”. Mesmo que não sigamos o conceito de John Tyler Bonner, em A Evolução da Cultura nos Animais, ainda vemos baleias cujos cantos são copiados por outros indivíduos e evoluem ao longo dos anos, e primatas com sons próprios para cobra, gavião e membros superiores e inferiores na hierarquia do bando. Se isso não é cultura, o que seria?


“Vimos que na evolução animal para cada nova característica adquirida ocorria a perda de uma anterior.” [42]

Sério? O que os insetos perderam para ganharem asas? O que o rinoceronte perdeu para ganhar um chifre? O que a girafa perdeu ao ter o pescoço esticado? Não acho que “ausência de asas”, “ausência de chifre” e “pescoço curto” sejam respostas honestas aqui.


“Com o homem, uma vez pelo menos este fato tornou-se verdadeiro. Ao adquirir cultura perdeu a propriedade animal, geneticamente determinada, de repetir os atos de seus antepassados, sem a necessidade de copiá-los ou de se submeter a um processo de aprendizado. Um jovem lobo, separado de seus semelhantes no momento do nascimento, saberá uivar quando necessário; saberá distinguir entre muitos odores o cheiro de uma fêmea no cio e distinguir, entre numerosas espécies animais, aquelas que lhe são amistosas ou adversárias.” [42]

Seria como dizer que macacos já nascem sabendo quais plantas podem comer e quais devem evitar, o que é simplesmente falso. Os dois grandes grupos de pássaros, Oscines e Suboscines, têm como uma das principais diferenças o fato de num deles o canto ser geralmente aprendido, enquanto no outro o canto é geralmente inato. Qualquer pesquisador que trabalha com reintrodução de fauna sabe da necessidade do aprendizado em diferentes espécies, notadamente as sociais. Esse aprendizado inclui as brincadeiras na infância, denominadas genericamente de play e observadas em muitos mamíferos, como relatado por Edward O. Wilson em seu Sociobiology. Se sociólogos e antropólogos de maneira geral não torcessem o nariz para este livro, evitariam muitas das generalizações infundadas e tolas que repetem com frequência.


“Em primeiro lugar, tais palavras [instinto de conservação, instinto materno, filial, sexual, etc] exprimem um erro semântico, pois não se referem a comportamentos determinados biologicamente, mas sim a padrões culturais. Pois se prevalecesse o primeiro caso, toda a humanidade deveria agir igualmente diante das mesmas situações, e isto não é verdadeiro.” [50]

Ora, exceções não invalidam regras, pelo contrário. O Sol nos aquece, menos durante um eclipse. Deveríamos então concluir que, só por existirem eclipses, o Sol não nos aquece?


“Como falar em instinto de conservação quando lembramos as façanhas dos camicases japoneses (pilotos suicidas) durante a Segunda Guerra Mundial? Se o instinto existisse, seria impossível aos arrojados pilotos guiarem os seus aviões de encontro às torres das belonaves americanas.” [50]

O autor aqui enxerga em preto e branco: ou tudo ou nada. Ou há instinto ou não há. Ora, é justamente o instinto da conservação que torna tão admirável o comportamento heroico, a aniquilação de si em nome do bem comum. Se o instinto de conservação não existisse, qualquer pessoa seria capaz de se matar por um bem maior, e os nomes dos heróis não ecoariam pela eternidade. Talvez nem mesmo existisse a palavra herói. Animais são máquinas extremamente complexas. Se uma moeda lançada para o alto tem a chance, ainda que remota, de cair em pé (logo, nem cara nem coroa), quantas vezes o improvável se multiplica nos caóticos sistemas orgânicos? É por isso que 90% das onças são pintadas, 10% são pretas e raramente surge um indivíduo albino. A mesma variabilidade imprevisível acontece no comportamento, implicando que nenhum instinto é monolítico e imutável. Se fosse, a Natureza teria muito menos espaço para criar a biodiversidade que observamos.


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