O posmodernismo é
um fenômeno complexo, que se afirma como sendo “libertário” e
“progressista”, mas que parece ter agido mais no sentido
contrário, aumentando o individualismo, fragmentando os movimentos
sociais, devolvendo o poder a instituições conservadoras, mais
notadamente as igrejas. Embora se mostre aparentemente diverso, e
mesmo “indefinível”, traz alguns pontos de fácil identificação:
-
Textos de difícil leitura, que escondem a obviedade de alguns argumentos para dar a seus autores a fama de “grandes pensadores”, e fornecem a argumentos frágeis a desculpa do “mas não foi isso que eu quis dizer”. Se quer mesmo ser libertário e progressista, por que não escrever com a clareza praticada por autores como Voltaire, Schopenhauer, Brecht, Chomsky, Piketty?
-
Ataque à “racionalidade instrumental”, ou simplesmente à razão (descrita como “razão ocidental”, como se a previsão de eclipses, a medida de áreas de plantio ou a soma e a multiplicação fossem exclusivas à cultura ocidental). Evidente que um povo que não sabe usar a razão é vítima fácil de manipuladores, sejam políticos ou religiosos – geralmente os dois ao mesmo tempo. Longe de emancipar as populações tradicionais, a ignorância científica apenas as torna presas fáceis para os poderosos que as têm dominado desde muito antes de Descartes.
-
Relativização e fragmentação da Realidade, transformação do conceito “opinião” em “verdade”. Vem daí o ditado hoje popular que diz que “cada um tem a sua verdade”. Numa selva de ideias onde cada pequeno grupo luta por suas próprias causas, de maneira desorganizada e sem critérios mínimos comuns, é evidente que a direita política, organizada e atuando de forma coordenada, leva larga vantagem. O resultado disso é o recrudescimento religioso e o retorno do fascismo, além da degradação ambiental, criminalização de práticas ancestrais, consumismo e isolamento social que vemos crescer a cada dia.
Tendo lido numa
disciplina universitária alguns textos de Boaventura de Sousa
Santos, usarei alguns trechos para tentar evidenciar esse tipo de
pensamento, muitas vezes escondido nas entrelinhas. Nem por isso
causam menos estrago à juventude que anseia por mudança, mas não
encontra na literatura obrigatória de seus cursos de formação
sequer o mínimo para aprenderem a se expressar com clareza, muito
menos identificar e agir efetivamente contra os verdadeiros inimigos.
Os trechos abaixo
são um trabalho ainda em produção. Futuramente pretendo ampliá-los
(há muito material pra isso) e organizá-los de forma mais clara e
acessível. Os números entre colchetes denotam a página onde o
trecho citado se encontra.
A
Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (2006)
Cap. 3
A Ecologia de
Saberes
“Mesmo que a
natureza não existisse em sociedade – e existe – o
conhecimento sobre ela existiria.” [137]
A sociedade é parte
da Natureza, não o contrário!
“(...) período de
transição paradigmática que designei como de transição entre a
ciência moderna – que identifiquei com a mecânica clássica,
cartesiana e newtoniana, positivista (determinista,
reducionista e dualista) – e uma ciência emergente que designei
por ciência pós-moderna.” [139]
A “ciência
moderna” é probabilística. Professores que fazem lavagem cerebral
em seus alunos com textos como os de Santos sequer sabem o que é o
“p” fundamental em artigos científicos.
“[criticando a
sociobiologia] Para estes pesquisadores, no momento em que se
descobrir a interação entre a evolução cultural e a evolução
genética, as leis gerais a que se chegar terão vigência em todas
as disciplinas. (...) Confirmar-se-á então que todos os
fenômenos vivos obedecem às mesmas leis da física e da química já
que os níveis mais altos da organização da vida (incluindo a
cultura e a sociedade) decorrem de fenômenos de agregação que
ocorrem nos níveis mais baixos (biológicos e físico-químicos).
(...) As ciências sociais serão a prazo uma disciplina das
ciências naturais.” [140]
1. Já não está
confirmado? Quais organismos obedecem a leis físicas e químicas
diferentes?
2. Ignora por
completo as chamadas propriedades emergentes: embora a biologia ajude
a explicar fenômenos sociais (como a química ajuda a explicar
fenômenos biológicos), a sociologia jamais será reduzida
à biologia, assim como a biologia nunca
foi reduzida à química.
“Não
faz sentido, assim, a oposição entre o real e o construído (...).
O que existe – conhecimento, objetos tecnológicos, edifícios,
estradas, obras culturais – existe porque é construído.”
[149]
E
o uirapuru, a tartaruga, a baleia, foram construídos? Ou
simplesmente não existem?
A Crítica da Razão
Indolente: contra o desperdício da experiência (2000)
Cap.
1
Da
ciência moderna ao novo senso comum
“Ao
contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia
sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata. Tais
evidências, que estão na base do conhecimento vulgar, são
ilusórias.” [62]
Podem
ser ilusórias. Se nossos sentidos fossem ilusórios (ou seja, fossem sempre ilusórios), não teriam evoluído em primeiro lugar.
A biologia é
sempre ignorada pelos posmodernos (a não ser quando é para criticá-la como "malvada" e citar apenas casos dispersos de má ciência, como Josef Mengele). Thomas Kuhn, autor de A Estrutura das Revoluções
Científicas (livro que dá fundamento a boa parte do posmodernismo),
fala apenas de física. Ernst Mayr o criticou duramente em seu livro
Isto É Biologia, mas quem o leu? Quem o cita?
“A
primeira variante – cujo compromisso epistemológico está bem
simbolizado no nome de ‘física social’ com que
inicialmente se designaram os estudos científicos da sociedade –
parte do pressuposto de que as ciências naturais são uma aplicação
ou concretização de um modelo de conhecimento universalmente válido
e, de resto, o único válido.” [65, por que não “biologia
social”?]
“Einstein
constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna,
um rombo, aliás, mais importante do que o que Einstein foi
subjetivamente capaz de admitir.” [68, Darwin ignorado]
“Se
as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das
formalizações matemáticas em que se expressam, as
investigações de Gödel vêm demonstrar que o rigor da
matemática carece ele próprio de fundamento. A partir daqui é
possível não só questionar o rigor da matemática como também
redefini-lo enquanto forma de rigor que se opõe a outras formas
de rigor alternativo, uma forma de rigor cujas condições de
êxito na ciência moderna não podem continuar a ser concebidas como
naturais e óbvias.” [70]
1.
O rigor da ciência moderna se fundamenta no fato de edifícios de
vinte andares, elevadores, aviões, carros, ônibus e trens-bala
serem usados com segurança por milhões de pessoas todos os dias.
2.
Mas 1+1 = 2 está tão longe de Gödel quanto o movimento dos animais
está de Einstein.
3.
No fundo o que Santos quer – e consegue – ainda que sem
expressá-lo diretamente, é devolver o poder à igreja. Não aos
índios, negros, mulheres, ambientalistas, homossexuais, mas às
instituições religiosas, donas de TVs, estúdios de cinema, rádios,
editoras, gráficas, universidades, jornais, etc. Sem a ciência
moderna para questionar, em pé de igualdade, o discurso teocrático,
assistimos hoje ao retorno da religião monoteísta e sua dominância
sobre a política e a moralidade. Assistimos à ascensão do fascismo
pelo enfraquecimento da esquerda. O próprio Iluminismo, que
enfrentou o dogmatismo cristão pela primeira vez em mil anos, é
questionado por estudantes de ciências humanas que se acreditam
perfeitamente libertários e democráticos.
“Depois
da euforia cientista do século XIX e da consequente aversão à
reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo (...)”
[71]
Da
estante de um dos meus orientadores durante a graduação em
biologia, peguei emprestado e li dois livros interessantíssimos: The
Phylosophy of Evolution, de Ronald Good, e Philosophy of Biology, de
Elliott Sober.
Isso
ilustra como o “positivismo” retratado pelos posmodernos é um
espantalho, uma caricatura de “má ciência” usada para atacar a
“boa ciência”.
“Para
Ruth Hubbard, a aceitação tão ampla da teoria de Darwin assenta,
por um lado, no fato de ser uma teoria histórica e materialista,
congruente com o ambiente intelectual do tempo, e, por outro lado, no
fato de ser uma teoria intrinsecamente otimista que se adequava bem à
ideologia meritocrática e individualista encorajada pelos êxitos do
mercantilismo inglês, do capitalismo industrial e do imperialismo.”
[86]
Ora,
a evolução biológica por seleção natural, chamada “darwinismo”,
foi menos aceita justamente nos países monoteístas, os mesmos que
tiveram mais êxito no mercantilismo, capitalismo e imperialismo.
“Os
macacos e os símios são, assim, uma das matérias-primas a partir
das quais o homem ocidental constrói a imagem de si próprio como
ser natural separado da natureza. Por isso, a primatologia é, no
fundo, um conjunto de metáforas ou histórias sobre a origem e a
natureza do homem, um discurso ocidental sobre a ordem social.”
[86]
Ora,
a construção do homem ocidental como “ser separado da natureza”
não é uma invenção da ciência moderna, muito menos da
primatologia, mas um mito bíblico. A primatologia, pelo contrário,
mostra os seres humanos como parte da Natureza.
“Enquanto
a primatologia ocidental considera fundamental a distinção entre
homem e natureza, a primatologia japonesa assenta na ideia de uma
continuidade e de uma unidade essencial entre seres humanos e
animais.” [87]
Não
sou japonês, e durante os cinco anos de graduação em biologia,
jamais encontrei nenhuma “distinção fundamental” entre os
humanos e a Natureza, muito pelo contrário, o que vi foi justamente
a continuidade e unidade essencial entre nós e os outros animais. Se
o Ocidente teima em ver os humanos como “não-animais”, isso se
deve ao dogmatismo monoteísta, e não à ciência ocidental.
“O
etnocentrismo ocidental, que acima reconhecemos na teoria da evolução
de Darwin, desdobra-se em androcentrismo nas suas concepções sobre
as relações entre os sexos. O reino animal está cheio de machos
avidamente promíscuos em perseguição de fêmeas que se mantêm
passivas, lânguidas e expectantes até escolherem um parceiro, o
mais forte ou o mais bonito. Este sexismo científico prolonga-se na
sociobiologia, sobretudo nas explicações dadas para as assimetrias
entre os sexos.” [88]
As
diferenças entre os sexos no reino animal são fonte de profunda
sabedoria. Há machos que cuidam da prole, fêmeas promíscuas,
homossexualidade, bissexualidade, etc. O autor apenas faz o recorte
que lhe interessa.
“Os
estudos feministas, sobretudo os dos últimos vinte anos, tornaram
claro que, nas concepções dominantes das diferentes ciências, a
natureza é um mundo de homens, organizado segundo princípios
socialmente construídos, ocidentais e masculinos, como os da guerra,
do individualismo, da concorrência, da agressividade, da
descontinuidade com o meio ambiente.” [88]
É
incrível como Santos não cita uma única vez o papel do monoteísmo
judaico, e consequentemente o cristão, no machismo dominante na
sociedade ocidental. Pelo contrário, sempre que cita a religião é
para colocá-la como “alternativa válida” à ciência moderna.
Por
que não citar o feminismo de Uta Ranke-Heinemann expresso em seu
livro Eunucos pelo Reino de Deus? Por que não citar passagens da
Bíblia, tanto do Antigo como do Novo Testamento, como Genesis 2:18,
“E disse o Senhor
Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora
idônea para ele” ou
Efésios 5:23, “Porque o
marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da
igreja”? Por que não cita
o fato do deus judaico ser chamado de “Senhor dos Exércitos”
mais de 200 vezes na Bíblia inteira?
Por que não compara o
monoteísmo judaico-cristão com outras mitologias, como por exemplo
o Dao De Jing, que diz no
capítulo 28: “Conheça seu lado masculino, proteja seu lado
feminino”? Não, para ele
tudo de ruim da nossa sociedade veio da ciência moderna, e
é esta unicamente que ele ataca.
“A
transformação da natureza num artefato global, graças à
imprudente produção-destruição tecnológica, e a crítica
epistemológica do etnocentrismo e androcentrismo da ciência
moderna, convergem na
conclusão de que a natureza é a segunda natureza da sociedade e
que, inversamente, não há uma natureza humana porque toda a
natureza é humana.
Assim sendo, todo o conhecimento científico-natural é
científico-social. Este passo epistemológico é um dos mais
decisivos na transição paradigmática que estamos a atravessar. É
também um passo particularmente difícil.” [89]
Alguém falou em antropocentrismo?
Epistemologias do Sul (2009)
Cap. 1
Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes
“No
campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à
ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o
verdadeiro e o falso, em detrimento de dois conhecimentos
alternativos: a filosofia e a teologia.” [33]
Filosofia
sem ciência enxerga tão mal quanto a ciência sem filosofia. Isso
já é sabido há muito tempo, bem antes dos ataques posmodernos à
“ciência moderna”. Ao mesmo tempo, o autor busca fortalecer a
teologia, geralmente interpretada como o estudo do deus
judaico-cristão. Os povos indígenas do Alto Rio Negro denominam o
estudo de suas divindades, bem como do restante da Natureza, de
mitologia, uma categoria que
reúne o que os brancos separam em ciência, religião, filosofia,
teoria, prática, etc. O autor fala tanto dos povos indígenas, mas
permanece usando o termo teologia,
não sabemos se inconscientemente. Da mesma forma, fala da
emancipação e do fim das opressões, mas continua usando os termos
homem e homens
quando quer falar de todas as pessoas.
“O que [as
teorias do contrato social dos séculos XVII e XVIII] dizem é
que os indivíduos modernos, ou seja, os homens
metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado de
natureza para formarem a sociedade civil. O
que silenciam é que, desta
forma, se cria uma vasta região do mundo em estado de natureza, um
estado de natureza a que são condenados
milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidade de escaparem
por via da criação de uma sociedade civil. A
modernidade ocidental, em vez de significar o abandono do estado de
natureza e a passagem à sociedade civil, significa a coexistência
da sociedade civil com o estado de natureza, separados por uma linha
abissal com base na qual o olhar hegemônico, localizado na
sociedade civil, deixa de ver
e declara efetivamente como não-existente o estado de natureza.”
[36]
1. Condenados?
Escaparem? Como se os povos indígenas desejassem fugir das terras
que ocupam e vir morar em nossas cidades sujas, barulhentas e
violentas. “Vocês brancos não têm alma”, já relatou Jorge
Pozzobon, depois de conhecer alguns povos indígenas.
2.
Ainda
bem que li Darcy Ribeiro (Os Índios e a Civilização) e
Helmut Sick (Tukani: entre os animais e os índios
do Brasil Central, que me contaram a história da
relação entre a sociedade brasileira e os povos indígenas, desde
os tempos do SPI e a matança desenfreada de “índios”, passando
por Marechal Rondon, que teria declarado “morrer se preciso for,
mas não matar nenhum índio”, até os tempos da FUNAI atuais. Se
dependesse dos textos como os de
Sousa, leria quilômetros de palavreado raso sem aprender nada sobre
o que de fato aconteceu. O
Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961, quando a “ciência
moderna” já sabia muito sobre os índios, o bastante para concluir
que tinham, sim, alma (o que foi negado por séculos por religiosos
interesseiros), e que mereciam um espaço para existirem em seu
“estado de natureza”, ou seja, da forma como bem
desejam.
“O
outro lado da linha [ou seja, povos nativos
de diferentes
continentes]
alberga apenas práticas incompreensíveis, mágicas ou idolátricas
[do
ponto de vista do “conhecimento moderno”]. A completa estranheza
de tais práticas conduziu
à própria negação da natureza humana dos seus agentes.
Com base nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade
humana, os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de
que os selvagens eram sub-humanos.” [37]
É
sério
que ele classifica os dizeres de humanistas dos séculos XV e XVI
como “conhecimento moderno”? Mesmo
Darwin, que viu primeiro
as
diferenças entre povos não europeus e ele mesmo (ao contrário de
Wallace, que notou logo as semelhanças), escreveu
sobre a delicada questão das raças humanas: “o mais pesado dos
argumentos contra tratar as raças humanas como espécies distintas é
que há
gradações entre elas (...) e é impossível descortinar entre elas
claros traços distintivos. (...)
Se
[um naturalista] for prudente, acabará por reunir todas as formas
gradativas numa só espécie, dizendo a si mesmo que não tem o
direito de denominar objetos que não pode definir.” (A
descendência do homem. 1871).
Este
é o raciocínio criterioso e precavido de um grande cientista, não
os espantalhos acusados de “certezas” e “reducionismos”
criticados pelos posmodernos. Já Wallace, que vislumbrou o fenômeno
da seleção natural quase ao mesmo tempo que Darwin, escreveu em
1863sobre
sua estada entre povos nativos da Polinésia: “Ao
partir (...) acreditei que, globalmente, a minha estadia entre este
povo simples e de boa natureza foi causa de prazer e benefício para
ambas as partes.” Em
relação aos povos da Amazônia, Wallace também
mostrou
uma disposição benevolente, “admirando como tinham desenvolvido o
engenho necessário para sobreviverem em meio tão adverso.”
[https://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/AP26.27.06_antoniobracinha]
Comparemos
as posições desses dois grandes cientistas com a visão
predominante entre religiosos fundamentalistas no sul dos Estados
Unidos, que fizeram uma guerra para garantirem o seu direito de
possuir escravos (a Guerra de Secessão, entre 1861
e 1865). E
os posmodernos em geral vêm criticar a “ciência moderna”
enquanto defendem a teologia? É
muita manipulação!
No
Brasil de
hoje, deputados
conservadores e
extremamente
religiosos
são os primeiros a tentarem
flexibilizar
a definição de trabalho escravo, para aumentar o lucro do
empresariado. Alguns
dirão que esses deputados “são religiosos da boca pra fora”,
mas não foi sempre esta a razão de ser da teologia? Encontrar
argumentos racionais para justificar o status
quo?
“Uma
concepção pós-abissal de marxismo (em si mesmo, um bom exemplo de
pensamento abissal) pretende que a emancipação dos trabalhadores
seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as
população descartáveis do Sul global, que são oprimidas
mas não diretamente exploradas pelo capitalismo global.” [52]
Para
mim, a ausência de aspas ao redor de “descartáveis” (e em
vários outros pontos do texto) é extremamente constrangedora. Como
quando o próprio autor usa “homens” para se referir a “humanos”,
ou quando um progressista usa “americanos” ou “norte-americanos”
para se referir a estadunidenses.
“o
pensamento pós-abissal é um pensamento não-derivativo, envolve uma
ruptura radical com as formas ocidentais modernas de pensamento e
ação. No nosso tempo, pensar
em termos não-derivativos significa pensar a partir da
perspectiva do outro lado da
linha [por exemplo, os povos indígenas], precisamente por o outro
lado da linha ser o domínio do impensável na modernidade
ocidental.” [53]
1.
Se as “formas ocidentais modernas de pensamento” estão na origem
do poder do Ocidente, essa ruptura não significa abrir mão da luta
pelo poder? Em outras passagens ele fala de unir outros conhecimentos
ao conhecimento ocidental, aqui ele já fala de “ruptura radical”.
De fato, a segunda perspectiva deve ser predominante, considerando o
completo analfabetismo científico que domina a maior parte dos
estudantes de ciências humanas.
2.
É no mínimo curioso ele falar sobre “pensar a partir da
perspectiva do outro lado” e não citar as palavras de um único
indígena.
“a
copresença radical pressupõe ainda a abolição da guerra, que,
juntamente com a intolerância, constitui a negação mais radical da
co-presença.” [54]
Enquanto
Thomas Piketty apresenta uma solução prática (ainda que difícil)
ao problema da desigualdade econômica crescente no capitalismo,
enquanto Karl Marx e Mao Zedong propõem soluções práticas para a
dominação capitalista, enquanto Gandhi apresenta soluções
práticas para a colonização britânica na Índia e o racismo na
África do Sul, este autor não tem nada além de belas palavras,
miragens adocicadas que nada trazem de solução. Pelo contrário, o
domínio atual dessas ideias serviu apenas para dividir e assim
enfraquecer a esquerda, agora ignorante da ciência – a única
força poderosa o bastante para vencer o dogmatismo religioso – e
por isso mesmo refém de poderosas organizações empresariais
internacionais, tanto religiosas como não-religiosas. Por exemplo, a
ciência já havia mostrado que a homossexualidade é parte
integrante da diversidade sexual humana (e também de outras
espécies); hoje, a histeria religiosa fala de “ditadura gay” e
de “kit-gay”, ganha espaço na mídia conservadora e vence as
eleições de 2018, colocando um ultraconservador e sua equipe de
coronéis e bispos no poder de uma das maiores nações do planeta.
Quando é que a esquerda vai perceber que vem sendo enganada há
décadas? Precisamos de mais conhecimentos científicos, não de
menos! Precisamos de intelectuais dando nome aos bois, não pintando
paisagens agradáveis à vista! Como diz o Dao De Jing, 81: “Palavras
confiáveis não são belas; palavras belas não são confiáveis.”
“No
período de transição que iniciamos, no qual resistem ainda as
versões abissais de totalidade e unidade, provavelmente precisamos,
para seguir em frente, de uma epistemologia geral residual ou
negativa: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma
epistemologia geral.” [54]
Ele
está, idealisticamente, fugindo do consenso e da possível
união dos povos, e quer “abolir” a guerra?
“Por
um lado, a ideia de diversidade sociocultural do mundo que tem
ganhado fôlego nas três últimas décadas e favorece o
reconhecimento da diversidade e pluralidade epistemológica como uma
das suas dimensões.” [55]
Darwin,
o “imperialista inglês” (na visão do autor), já havia
reconhecido essa diversidade, razão pela qual empreendeu uma
detalhada pesquisa, cujos resultados publicou em seu livro “A
expressão das emoções no homem e nos [outros] animais”. Mesmo
Voltaire, um século antes, já o reconhecera ao escrever seu
belíssimo “Tratado sobre a tolerância”.Dois livros, diga-se de
passagem, de leitura agradável e
acessível, além
de verdadeiramente profundos.
Por
outro lado, se todas as epistemologias partilham as premissas
culturais do seu tempo, talvez uma das mais bem consolidadas
premissas do pensamento abissal seja, ainda hoje, a da crença na
ciência como única forma
de conhecimento válido e
rigoroso”. [55]
Eu
nunca vi um cientista de verdade se expressar dessa forma (“a
ciência é o único conhecimento válido”), até porque cientistas
estão sempre indo às florestas tropicais perguntar aos índios
sobre plantas medicinais que lhes permitam patentear novos
medicamentos. Agora, que a ciência é mais rigorosa
de maneira geral que
outras formas de conhecimento, acho que nenhum cientista discordaria.
O que eu gostaria de ver
mesmo é
autores posmodernos
questionarem a Tabela
Periódica, e afirmarem que a teoria de “terra, fogo, água e ar”
é igualmente válida
(ou igualmente útil).
Não, eles preferem se
restringir a zonas mais
nebulosas do conhecimento,
onde suas teorias generalizantes sobre caricaturas da ciência possam
enganar os desavisados.
“[Falando
de “povos (...)
parceiros da resistência ao capitalismo global”] Em
termos geopolíticos, trata-se de sociedades periféricas do sistema
mundial moderno onde a crença
na ciência moderna é mais
tênue, onde é mais visível a vinculação
da ciência moderna aos desígnios da dominação colonial e
imperial, e onde outros
conhecimentos não científicos e não-ocidentais prevalecem
nas práticas quotidianas das populações.” [55]
1.
É interessante a associação que ele faz entre crença e
ciência. De fato, a quem não entende como a ciência
funciona, só resta acreditar.
Mas o projeto Iluminista
(“positivista”) de educação implica justamente ensinar o
que é e como funciona
o método científico, e não fazer uma doutrinação de caráter
religioso.
2.
O projeto de dominação
colonial e imperial do Ocidente sempre foi pautado na Bíblia
judaico-cristã! Ainda hoje
são igrejas, e não cientistas, que eliminam a autoridade dos pajés
e destroem lentamente as culturas indígenas. Numa
grande capital brasileira de 2018, quase metade das rádios FM são
religiosas. No Congresso
Federal, a bancada da Bíblia vota em uníssono com as bancadas do
Boi e da Bala.
3.
Retirada a força da ciência que fazia frente ao messianismo
judaico-cristão, o “conhecimento” que passa a prevalecer na
prática cotidiana das populações é, cada vez mais, o proselitismo
religioso monoteísta, fundamentalista e supersticioso,
estelionatário e produtor de bispos bilionários que comandam
multidões de milhões de eleitores alienados. Se conseguem fazer
isso mesmo nas grandes capitais, o que dizer dos rincões da Amazônia
e do Cerrado, biomas que não têm nenhuma chance frente à onda de
obscurantismo que esse tipo de texto tem favorecido.
“As
intervenções no mundo real que [o conhecimento científico]
favorece tendem a ser as que servem os grupos sociais que têm maior
acesso a este conhecimento.” [56]
Se
no lugar de “conhecimento científico” ele escrevesse “monoteísmo
judaico-cristão”, a sentença faria mais sentido. As missas
católicas foram rezadas em latim até o meio do século XX! Isso
servia ao povo? Ou, pelo contrário, servia àqueles que tinham
“maior acesso a este conhecimento”? Os padres podem fazer voto de
pobreza, mas almoçam bife com suco de laranja todos os dias. E isso
não é nada perto dos pastores e bispos evangélicos que agora se
tornam maioria.
“Na
ecologia de saberes, enquanto epistemologia pós-abissal, a busca de
credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica
o descrédito do conhecimento científico.”
[57]
Descrédito,
não. Apenas uma “ruptura radical” (ver
trecho em
[53]).
Este “não implica
descrédito” é um caso
exemplar do “morde e
assopra” típico desses autores. Quando criticados, têm sempre uma
porta aberta por onde
escapar: “mas não foi
isso que eu quis dizer...”
“Trata-se,
por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência,
isto é, as práticas científicas alternativas que se têm tornado
visíveis através das epistemologias feministas e pós-coloniais e,
por outro lado, de promover a interação e
interdependência entre os saberes científicos e outros saberes,
não-científicos.” [57]
Mais
morde e assopra. Isso tudo
depois de acusar Darwin de ser um imperialista inglês, de
acusar a ciência moderna de
estar vinculada aos desígnios de dominação colonial e imperial, de
ignorar a imensa riqueza da biologia moderna, atendo-se apenas a
pontos extremamente
restritos que serviriam
para ilustrar
a sua
tese. Ele seria menos
hipócrita se mostrasse como
e onde
se dá essa “interação e interdependência”, ao invés de só
jogar a ideia pro alto, na esperança de que alguém
ninguém
a apanhe.
“[Em
Bali, na Indonésia,] Os sistemas tradicionais de irrigação
assentavam em conhecimentos hidrológicos, agrícolas e religiosos
ancestrais, e eram administrados por sacerdotes de um templo
hindu-budista dedicado a Dewi-Danu, a deusa do lago. Foram
substituídos precisamente por serem considerados produtos da magia e
da superstição, derivados do que foi depreciativamente
designado como ‘culto do arroz’.” [60]
Mais
uma vez, acusa (com um único exemplo) a “ciência moderna” de
fazer o que o monoteísmo tem feito há milênios! A maloca, ou casa
comunitária dos povos indígenas, foi proibida por motivos
religiosos. O combate a certas drogas foi iniciado com justificativas
religiosas. O combate ao aborto, à homossexualidade, ao candomblé e
à umbanda, às casas de show e forró, aos bares, aos pajés e ao
conhecimento tradicional indígena, à própria demarcação de
terras indígenas, todos têm como pano de fundo, ou parte da sua
sustentação, o monoteísmo judaico-cristão e sua arma maior: uma
interpretação literal (ou nem tanto) da Bíblia.
“(...)
um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco
séculos, e uma riqueza imensa de experiências cognitivas tem
vindo a ser desperdiçada.” [61]
Aqui
ele usa uma espécie de oração sem sujeito. Quem causou este
epistemicídio? A ciência moderna? Ele não diz. Tudo para não
denegrir a “santa religião”, cujos padres eram autorizados a
espancar os estudantes indígenas que ousassem usar a língua nativa
nas escolas. E que hoje, em tempos de soft power,
apenas traduzem os
Evangelhos, o Novo
Testamento, e finalmente a Bíblia inteira,
para a língua nativa, em
seus “abençoados” e “idôneos” esforços de alfabetização.
“O
que importa, pois, é desfamiliarizar a tradição canônica das
monoculturas do saber sem
parar aí, como se essa desfamiliarização fosse a única
familiaridade possível.”
Monoteísmos
são exatamente isso: monoculturas do saber. Menos para o autor.
Olhando
suas referências, decidi calcular
quantas vieram de países do
Sul, já que “Epistemologias do Sul” é o nome do livro, do qual
o autor é um dos organizadores. De
um total de 229 referências, não identifiquei a localização de
62. Das 167 restantes, 123 foram publicadas nos Estados Unidos ou
Inglaterra e
14 no restante da
Europa. Das 30 restantes, 13
foram publicadas no Brasil (todas dele).
As outras 17 se dividem em vários países (África do Sul,
Argentina,
Austrália, Bolívia, China, Colômbia, Índia, Israel, México...).
Como fui obrigado a dizer ao
professor desta disciplina, quando vi que ele e seu “aluno
escolhido” falavam durante o maior tempo da aula, não nos deixando
expressar nossos pontos de
vista por completo: “a
sua prática passa a quilômetros da sua teoria!”
Epistemologia Ambiental
Enrique
Leff ?
Cap.
5
Pensar a Complexidade Ambiental
“A
crise ambiental, entendida como crise de civilização, não poderia
encontrar uma solução por meio da racionalidade teórica e
instrumental que constrói e destrói o mundo.” [191]
Licenças
poéticas à parte, Leff é poeta ou cientista? Está buscando
soluções ou desenhando quadros oníricos? Quer dizer que o mundo
é construído pela razão? Rios e mares, florestas, campos e
animais, são criações humanas? Ou não são parte do mundo?
“A
concepção do mundo não emerge de categorias a priori
do pensamento; se os conceitos (espaço, tempo) indicam as condições
de possibilidade do ser, da coisa, do mundo, temos de entender as
condições do ser e das coisas que têm nos levado a instaurar as
concepções do mundo que
construíram o mundo. Dessa
forma, o ambiente não poderia ser concebido como uma intuição, mas
sim como um conceito que abre a possibilidade do ser como construção
social. Se as formas de conhecimento pelas quais chegamos a apreender
o real estão sujeitas a certas formas ‘humanas’ de entendimento
(a espacialidade e a temporalidade dos fenômenos e das coisas),
devemos ver como se constroem as categorias conceituais e as
ideologias teóricas que internalizam o interesse social nas formas
de entendimento da realidade.”
[196]
Mais
uma vez: o mundo não foi construído.
Parte do mundo sim: cidades, estradas, pontes. Mas o mundo
vai muito além do mundo
humano.
Incrível alguém que se diga “especialista em epistemologia
ambiental” desprezar essa diferença. Sem falar (outra vez) no
estilo pedante e oco:
esprema
sessenta páginas dessa cantilena e você não enche nem meia dúzia.
Racionalidade
ambiental: a reapropriação social da natureza
Enrique
Leff
Cap.
9
O movimento ambiental pela
reapropriação social da natureza: seringueiros, zapatistas,
afro-descendentes e povos indígenas da América Latina
“A
incorporação de princípios ambientais nas práticas produtivas e
nas estratégias políticas para a construção de sociedades
sustentáveis só pode definir-se em função do conjunto de valores
e propósitos que dão coerência e sentido a uma racionalidade
ambiental cultural concreta, com referência à qual se podem avaliar
as ações e movimentos sociais que se inscrevem e participam de seu
processo de constituição.” [459]
62
palavras e o autor chegou a dizer algo? O que ele disse, exatamente?
Mas o ouro mesmo vem na nota 2, ao final do capítulo:
“Como
veremos ao longo deste capítulo, embora a consciência ecológica
nem sempre seja um imaginário translúcido que se reflete
diretamente na discursividade dos movimentos sociais, e, em muitos
casos, esta consciência e sua expressão fiquem retardadas por
motivos estratégicos que colocam em relevo as demandas por autonomia
e direitos culturais nas formas que adota uma política da diferença
e do ser cultural na luta de poder com o Estado nacional (é o que
ocorre com o movimento dos povos indígenas do México e outros
países), em muitos casos, já visíveis, os atores sociais das lutas
dos povos indígenas e camponeses estão se constituindo através da
reinvenção de identidades e estratégias políticas em uma relação
direta com os processos de reapropriação da natureza e de seus
processos produtivos.” [509]
Será
um recorde mundial? 127 palavras numa única frase para dizer o quê,
exatamente? Nossas lutas ambientais dependem mesmo desse tipo de
péssimos autores para tornar estudantes desinteressados e com dor de
cabeça? Será que esses textos prolixos, repetitivos, cheios de
idealismos e pouca direção prática, são ao menos em parte
responsáveis pela quantidade enorme de quadros de depressão que
vemos nas nossas universidades?
Eu
pergunto a esses estudantes, que geralmente defendem com unhas e
dentes esses péssimos autores, se já leram autores bons de verdade,
autores que, além de escrever com clareza, também dão nome aos
bois, propõem soluções concretas, vão direto ao ponto e não
precisam queimar “bruxas” (como a ciência moderna) para alcançar
os seus fins. Por exemplo:
Bertrand
Russell, O Elogio ao Ócio
Voltaire,
Tratado sobre a Tolerância
Noam
Chomsky, qualquer um dos seus escritos sobre geopolítica
Joan
Martínez Alier, O Ecologismo dos Pobres
John
Gray, Cachorros de Palha
Thomas
Piketty, O Capital no Século XXI
José
Eli da Veiga, O Desenvolvimento Agrícola: uma visão histórica; O
Brasil rural precisa de uma estratégia de desenvolvimento
Celso
Furtado, O Mito do Desenvolvimento Econômico
Gilberto
Dupas, O Mito do Progresso
e
tantos outros
A
resposta, na maioria das
vezes, é que nunca leram.
Por isso defendem
a única “literatura crítica” que conheceram. “Crítica”,
entre aspas, porque superficial, cheia de inconsistências e erros
crassos, passagens praticamente ilegíveis, ataques exclusivos à
“ciência moderna” (poupando instituições massificantes e
parasitas como igrejas, veículos de mídia, o capital e seus
banqueiros e rentistas), além de obviedades repetidas à exaustão
num vocabulário pedante, que ocupa dezenas de páginas para dar a
seus autores a fama de “intelectuais” quando, no fundo, são
apenas indivíduos de intenção duvidosa que nem têm tanto assim a
dizer. Richard Dawkins [em
Postmodernism disrobed, 1998]
resumiu bem a situação:
Suponha que você é um impostor
intelectual sem nada a dizer, mas com fortes ambições de
ter sucesso na vida acadêmica, reunir um círculo de discípulos
reverentes e ter estudantes ao redor do mundo ungindo suas
páginas com um respeitoso marcador amarelo. Qual tipo de estilo
literário você cultivaria? Não um lúcido, claro, já que a
clareza deixaria exposta sua falta de conteúdo. Provavelmente você
produziria algo assim:
Podemos ver claramente que não existe nenhuma correspondência
biunívoca entre elos lineares significantes ou de arquiescritura,
que dependa do autor, e esta catálise maquínica multirreferencial,
multidimensional. A simetria de escala, a transversalidade, o caráter
pático não-discursivo de sua expansão: todas essas dimensões nos
removem da lógica do meio excluído e nos fortalecem em nossa
renúncia ao binarismo ontológico que havíamos criticado
previamente.
O trecho citado é do psicanalista Félix Guattari, outro “intelectual” facilmente reconhecido como mais um autor “posmoderno”.
Cultura:
um conceito antropológico
Roque
de Barros Laraia
Primeira
parte
Da Natureza da Cultura ou Da
Natureza à Cultura
“Tomemos,
como primeiro exemplo, os lapões e os esquimós. Ambos habitam a
calota polar norte, os primeiros no norte da Europa e os segundos no
norte da América. Vivem, pois, em ambientes geográficos muito
semelhantes, caracterizados por um longo e rigoroso inverno. Ambos
têm ao seu dispor flora e fauna semelhantes. Era de se esperar,
portanto, que encontrassem as mesmas respostas culturais para a
sobrevivência em um ambiente hostil. Mas isto não ocorre (...)”
[21]
Por
que isso seria de se esperar? Na Natureza observamos animais
semelhantes encontrando soluções totalmente diferentes para os
mesmos problemas. Gorilas são herbívoros; seus (e nossos) primos
chimpanzés, carnívoros. Ursos são em geral carnívoros; o urso
panda é herbívoro. Mamíferos marsupiais se desenvolveram com tanto
sucesso na Austrália quanto os mamíferos placentários se
desenvolveram no resto do mundo. Vespas dão carne animal para seus
filhotes; abelhas (que são um sub-grupo de vespas), dão néctar
extraído das flores. A regra na Natureza é a diversidade de
soluções, então, por que “era de se esperar” ausência de
diversidade entre culturas humanas isoladas geograficamente? A não
ser, claro, que os humanos sejam vistos como algo
externo à Natureza...
“A
grande qualidade da espécie humana foi a de romper
com suas próprias limitações:
um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou
toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem
asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou
os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o
único que possui cultura.”
[24]
1.
É
impensável, do ponto de vista evolutivo, que seres humanos primeiro
se tornassem frágeis, para depois se tornarem inteligentes. Pelo
contrário, foi
a evolução da inteligência que permitiu o atrofiamento posterior
dos músculos. Chimpanzés são primatas extremamente fortes, quem
ousa predá-los?
2.
Trata-se
de uma declaração extremamente antropocêntrica afirmar que somos
os “únicos possuidores de cultura”. Mesmo que não sigamos o
conceito de John Tyler Bonner, em A Evolução da Cultura nos
Animais, ainda
vemos baleias cujos cantos são copiados por outros indivíduos e
evoluem ao longo dos anos, e primatas com sons
próprios para
cobra, gavião e membros superiores e inferiores na hierarquia do
bando. Se isso não é cultura, o que seria?
“Vimos
que na evolução animal para cada nova característica adquirida
ocorria a perda de uma anterior.” [42]
Sério? O que os insetos perderam
para ganharem asas? O que o rinoceronte perdeu para ganhar um chifre?
O que a girafa perdeu ao ter o pescoço esticado? Não acho que
“ausência de asas”, “ausência de chifre” e “pescoço
curto” sejam respostas honestas aqui.
“Com
o homem, uma vez pelo menos este fato tornou-se verdadeiro. Ao
adquirir cultura perdeu a propriedade
animal, geneticamente determinada, de repetir os atos de seus
antepassados, sem a necessidade de copiá-los ou de se submeter a um
processo de aprendizado.
Um jovem lobo, separado de seus semelhantes no momento do nascimento,
saberá uivar quando necessário; saberá distinguir entre muitos
odores o cheiro de uma fêmea no cio e
distinguir, entre numerosas espécies animais, aquelas que lhe são
amistosas ou adversárias.”
[42]
Seria
como dizer que macacos já nascem sabendo quais plantas podem comer e
quais devem evitar, o que é
simplesmente falso.
Os
dois grandes grupos de pássaros, Oscines e Suboscines, têm como uma
das principais diferenças o fato de num deles o canto ser geralmente
aprendido, enquanto no outro o canto é geralmente inato.
Qualquer
pesquisador que trabalha com reintrodução de fauna sabe da
necessidade do aprendizado em diferentes espécies, notadamente
as
sociais.
Esse
aprendizado
inclui as brincadeiras na infância, denominadas genericamente
de
play
e observadas em
muitos mamíferos,
como relatado por Edward O. Wilson em seu Sociobiology. Se sociólogos
e antropólogos de maneira geral não
torcessem o nariz para este livro, evitariam muitas das
generalizações
infundadas e tolas que
repetem com frequência.
“Em
primeiro lugar, tais palavras [instinto de conservação, instinto
materno, filial, sexual, etc] exprimem um erro semântico, pois não
se referem a comportamentos determinados biologicamente, mas sim a
padrões culturais. Pois se prevalecesse o primeiro caso, toda a
humanidade deveria agir igualmente diante das mesmas situações, e
isto não é verdadeiro.” [50]
Ora,
exceções não invalidam regras, pelo contrário. O Sol nos aquece,
menos durante um eclipse. Deveríamos então concluir que, só por
existirem eclipses, o Sol não nos aquece?
“Como
falar em instinto de conservação quando lembramos as façanhas dos
camicases japoneses (pilotos suicidas) durante a Segunda Guerra
Mundial? Se o
instinto existisse,
seria impossível aos arrojados pilotos guiarem os seus aviões de
encontro às torres das belonaves americanas.” [50]
O autor
aqui enxerga em preto e branco: ou tudo ou nada. Ou
há instinto ou não há. Ora,
é justamente o instinto da conservação que torna tão admirável o
comportamento heroico, a aniquilação de si em nome do bem comum. Se
o instinto de conservação não existisse, qualquer pessoa seria
capaz de se matar por um bem maior, e os nomes dos heróis não
ecoariam pela eternidade. Talvez
nem mesmo existisse a palavra herói.
Animais
são máquinas extremamente complexas. Se uma moeda lançada para o
alto tem a chance, ainda que remota, de cair em pé (logo, nem cara
nem coroa), quantas vezes o improvável se multiplica nos caóticos
sistemas orgânicos? É
por isso que 90% das onças são pintadas, 10% são pretas e
raramente surge um indivíduo albino. A mesma variabilidade
imprevisível acontece no comportamento, implicando que nenhum
instinto é monolítico e imutável. Se
fosse, a Natureza teria muito menos espaço para criar a
biodiversidade que observamos.