quinta-feira, 15 de março de 2018

Gráficos para entender – será a religião um assunto individual?


É comum vermos gráficos representando uma só variável, como a preferência do eleitorado por cada candidato numa eleição.


No gráfico acima, vemos que o candidato B é o preferido dos eleitores, seguido pelo candidato C.

Menos comuns são gráficos que cruzam duas variáveis, mostrando como uma influencia a outra, ou como as duas são influenciadas ao mesmo tempo por algo mais.

Por exemplo, a imagem abaixo mostra como o tamanho de cada ilha afeta o número de espécies presentes em quatro grupos animais: borboletas, morcegos, anfíbios+répteis e aves. Cada ponto em cada gráfico representa uma ilha. (Este estudo foi feito em ilhas do Caribe, a pesquisa original pode ser vista aqui.)


Como o tamanho (área) das ilhas está no eixo X (eixo horizontal), pontos mais à direita em cada gráfico representam ilhas maiores. Pontos à esquerda, ilhas menores. Repare que a escala é logarítmica, ou seja, os números aparecem como 1, 10, 100, 1000... e não como 10, 20, 30, 40... Isso serve para que objetos naturais cuja dimensão varia muito (como ilhas), não fiquem tão distantes uns dos outros no gráfico.

Repare também que os pontos à esquerda geralmente estão abaixo dos pontos à direita. Como o eixo Y (eixo vertical) representa o número de espécies em cada ilha, isso significa que as ilhas (pontos) mais à esquerda tendem a ter menos espécies que aquelas à direita. Ou seja: ilhas maiores abrigam mais espécies, o que é compreensível. Essa tendência fica mais clara se adicionarmos uma linha em cada gráfico, que passe o mais perto possível de todos os pontos daquele gráfico – a chamada linha de tendência.


Esse tipo de gráfico não aparece muito em jornais e revistas populares, mas são muito comuns quando cientistas tentam explicar as causas de fenômenos naturais.


No gráfico acima, temos várias estrelas cuja massa e luminosidade puderam ser medidas. Cada ponto representa uma estrela. (O estudo original pode ser visto aqui.) Podemos ver que a luminosidade tem como causa principal a massa da estrela, ou seja, estrelas com mais massa brilham mais. Algo parecido é visto quando acendemos dois palitos de fósforo juntos: o brilho é maior que o de um único palito. O Sol (massa e luminosidade = 1) se encontra no cruzamento das duas linhas cinzas.

Também podemos ver que a linha de tendência está mais inclinada que nos gráficos anteriores. Isso significa que um pequeno aumento na massa causa um aumento bem maior na luminosidade. Uma estrela com o dobro da massa do Sol brilha cerca de dez vezes mais. Uma estrela com dez vezes a massa do Sol brilha cerca de 10.000 vezes mais. Quanto mais inclinada a linha de tendência (quanto mais “aponta para cima”), maior é o efeito da primeira variável (eixo horizontal) sobre a segunda (eixo vertical).

Podemos ver ainda que os pontos estão mais próximos da linha de tendência, em comparação com os gráficos anteriores. Isso porque a luminosidade de uma estrela depende de menos fatores do que os que regulam o número de espécies numa ilha: é um fenômeno relativamente simples. A ecologia de diferentes espécies animais envolve uma quantidade enorme de fatores, e ainda assim é impressionante que tendências como as que vimos sejam perceptíveis.

Este tipo de gráfico (chamado gráfico de dispersão) tem a vantagem de nos permitir comparar os resultados de diferentes pesquisas, para termos uma ideia se dois fenômenos aparentemente distintos estão ou não relacionados.

Religião e sexualidade

Vamos pegar como exemplo um fenômeno complexo, a relação entre religiosidade e sexualidade. Para isso, analisemos o caso do “pai” do computador, Alan Turing, um gênio que inventou uma máquina para que os aliados pudessem decifrar as mensagens em código usadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Essa máquina foi o precursor dos computadores modernos, e Turing conseguiu, com ela, dar uma grande vantagem aos aliados, reduzindo consideravelmente o tempo da guerra e salvando milhões de vidas.

Depois da guerra, descobriram que ele era homossexual, e ao invés de ser condecorado como herói, obrigaram-no a tomar hormônios que reduzissem sua libido “imprópria”, o que culminou no desenvolvimento de seios femininos em seu corpo. Por fim, ele foi encontrado morto, envenenado, e ainda hoje é debatido se foi assassinato, acidente ou suicídio (referências aqui, aqui e aqui). A homossexualidade foi considerada crime na Inglaterra até 1967. Se isso não bastasse, nos EUA o mesmo tabu persistiu até 2003, quando a Suprema Corte finalmente aboliu leis semelhantes, que ainda perduravam em vários estados.

Surge então uma pergunta: nos Estados Unidos, os estados que em 2003 ainda consideravam o sexo homossexual um crime o faziam devido ao moralismo religioso? Não apenas o sexo homossexual era considerado crime (dentro de casa e com as portas fechadas), mas também o sexo oral e anal entre heterossexuais. Esse excesso de pudor foi causado por um excesso de religiosidade?

Para tentar responder a essa pergunta, devemos procurar pesquisas sobre religiosidade em cada estado daquele país, estados para os quais sabemos o ano em que essas leis foram rejeitadas. Estados com uma população mais religiosa demoraram mais para abolir essas leis? Felizmente, esses dados podem ser encontrados facilmente na Internet. Um índice com a porcentagem de adultos que são “altamente religiosos” em cada estado pode ser encontrado aqui. O ano em que cada estado aboliu suas leis contra o sexo homossexual pode ser encontrado aqui. Unindo ambos, temos a tabela abaixo.

Estado dos EUA
Porcentagem de adultos “altamente religiosos”
Ano de legalização do sexo homossexual
Alabama
77
2003
Alaska
45
1980
Arizona
53
2001
Arkansas
70
2003
California
49
1976
Colorado
47
1972
Connecticut
43
1971
Delaware
52
1973
District of Columbia
53
1993
Florida
54
2003
Georgia
66
1998
Hawaii
47
1973
Idaho
51
2003
Illinois
51
1962
Indiana
54
1976
Iowa
55
1978
Kansas
55
2003
Kentucky
63
1992
Louisiana
71
2003
Maine
34
1976
Maryland
54
1999
Massachusetts
33
1974
Michigan
53
2003
Minnesota
49
2001
Mississippi
77
2003
Missouri
60
2003
Montana
48
1997
Nebraska
54
1978
Nevada
49
1993
New Hampshire
33
1975
New Jersey
55
1978
New Mexico
57
1975
New York
46
2000
North Carolina
65
2003
North Dakota
53
1973
Ohio
58
1974
Oklahoma
66
2003
Oregon
48
1972
Pennsylvania
53
1980
Rhode Island
49
1998
South Carolina
70
2003
South Dakota
59
1977
Tennessee
73
1996
Texas
64
2003
Utah
64
2003
Vermont
34
1977
Virginia
61
2003
Washington
45
1976
West Virginia
69
1976
Wisconsin
45
1983
Wyoming
54
1977

Cruzando esses dados obtemos o gráfico abaixo.


Percebemos claramente que a relação entre religião e homofobia é bem mais complexa que as relações encontradas com frequência na física, química e astronomia. Seres humanos e suas sociedades são extremamente complexos. Ainda assim, a relação encontrada acima, representada pela linha diagonal, parece indicar que geralmente, quanto mais religiosa a população de um estado, mais tempo levaram a reconhecer que homossexuais não são criminosos, afinal. (Infelizmente, milhões de pessoas sofreram tormentos inimagináveis até que isso fosse finalmente reconhecido.)

É claro que outras variáveis também influenciaram esse resultado, o que explica a dispersão dos pontos para longe da linha de tendência. O estado de West Virginia, por exemplo, representado pelo ponto WV no gráfico, embora tenha 69% de adultos considerados “altamente religiosos” nessa pesquisa, legalizou o sexo entre homossexuais ainda em 1976. O que explica esse afastamento da tendência? Talvez West Virginia tenha uma população de homossexuais mais atuante junto ao Legislativo? Talvez algum crime ou punição bárbara tenha influenciado a opinião pública mais cedo? Talvez eles não fossem tão religiosos então, e sua religiosidade aumentou mais tarde, sendo captada agora que essa pesquisa foi feita? Podemos levantar várias hipóteses e pesquisar cada uma. Uma das vantagens de um gráfico como este é que ele nos sugere novas linhas de investigação.

Outra coisa importante é que, quando calculamos a linha de tendência (ou melhor, quando um programa de computador a calcula para nós – obrigado novamente, Alan Turing!), descobrimos também a chance dessa tendência ter acontecido simplesmente por acaso. Se jogarmos essa mesma quantidade de pontos (são 51 estados nos EUA) aleatoriamente dentro da área do gráfico acima, observaremos resultados variados.


Observamos que pode existir uma tendência – crescente ou decrescente – sem que isso signifique uma relação real entre as variáveis: fruto do mais puro acaso. Porém, a relação observada na linha de tendência do nosso gráfico real é bem mais pronunciada que as que vemos acima. De fato, seria preciso criar em média 25.000 gráficos aleatórios até encontrarmos um único com a linha de tendência tão inclinada quanto a obtida com os nossos dados. Isso significa que existe 1 chance em 25.000 de que os nossos dados sejam puramente casuais, ou seja, que não exista de fato qualquer relação entre as variáveis analisadas. A isso os cientistas chamam um p (de probabilidade) igual a 0.00004 (ou 4/100.000 = 1/25.000). E é por isso que se diz que a ciência apenas aumenta a nossa confiança, sem jamais provar nada – pois o p nunca chega a zero (o que seria equivalente à certeza absoluta). Prova é um conceito que só existe na matemática, ainda que tantos gostem de usar essa palavra para enganar os desavisados.

Parece certo que a religião influencia políticas públicas, não sendo portanto um assunto apenas individual.

2 comentários:

  1. Excelente trabalho! Com certeza um excesso de religiosidade influenciando os seres humanos!

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    1. Obrigado, Maria José! Realmente, nada em excesso é bom!

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