domingo, 18 de julho de 2021

De volta à Idade Média

Já há algumas décadas os tempos se parecem com a “Idade Média”. Falava-se então de mistérios impenetráveis: a Santíssima Trindade, a Transubstanciação de Cristo, o Pecado, a Salvação, a Vida Eterna… Não se podia negá-los, não se podia duvidar deles. A mera sugestão de dúvida, inquietação ou protesto tinha um resultado claro e infalível: a Santa Fogueira da Inquisição.

As pessoas comuns, que já não conseguiam acompanhar as missas em latim, ainda assim deviam ouvir alguns desses conceitos em algum lugar, na sua própria língua. E, não podendo nem assim compreendê-los, deviam fingir não apenas que os compreendiam, mas também que acreditavam neles do fundo da alma. No fundo da mente, porém, tinham todo o direito de duvidar, de rir e ridicularizar aquelas tolices. Poucos, porém, sustentariam essa rebeldia secreta, por medo de serem pegos falando no sono, ou rindo quando deveriam se mostrar sérios, etc. O auto-engano, devidamente treinado e domesticado, transformou-se a cada geração na “verdade revelada, auto-evidente e absoluta”, essa fonte de hipocrisia que nos vem assolando há milênios.

É bem verdade que a história nos trouxe depois Galileu, Kepler, Descartes, Newton e tantos outros, e esses tempos de sombrias imposturas ficou para trás. Ou melhor, parcialmente para trás, pois as imposturas, como as sombras, não desaparecem tão fácil: posto o Sol, nasce a Lua; oculta a Lua, cintilam estrelas; nublado o céu, voam pirilampos…

Mutatis mutandis, uma nova moda se impôs. Depois do Iluminismo, do Século das Luzes, da Idade da Razão, da Era das Revoluções, houve motivos para se declarar que tudo isso era já muito velho, e se buscavam coisas novas. Uma nova leva de “intelectuais” brilhou no horizonte, com novos métodos, novos estilos, “novas ideias” ou, ao menos, novas roupagens. Não apenas rejeitavam o velho, mas escreviam de tal forma, com ideias tão atraentes, que só podiam mesmo ser muito inteligentes. “Aí estão verdadeiros intelectuais”, apontava-se. Mas sua prosa, que por hora parecia clara e verdadeira, em outros momentos se mostrava imprecisa, vazia ou, quem sabe, profunda demais? Prolixa, com certeza. Inconclusiva, geralmente. Mas não parecia dizer aquilo que se queria ouvir? Em pouco tempo, já ocupavam os espaços de poder: editoras, revistas especializadas, livrarias, universidades…

Em pouco tempo, eram O assunto. E como a Roupa Nova do Rei, todos concordavam em repetir que era de fato muito bela, a mais esplendorosa trama, etc. E no fundo não entendiam o que estava sendo dito. Mas parecia inteligente, e quem negasse tamanha inteligência, quem ousasse admitir que não havia entendido, que não via sentido, que chegava mesmo a achar aquilo ridículo, pomposo, fútil… seria relegado clara e infalivelmente à fogueira dos novos tempos: o ostracismo acadêmico, a perda do Currículo, os trabalhos forçados manuais (essa forma degradante de existência, no imaginário dos proletários do saber).

E assim, entre frases nebulosas e ataques explícitos à racionalidade—interrompida volta e meia por essas eras de incertezas e sombras—chegamos no mundo de hoje, onde a Terra Plana deixou de ser uma piada inofensiva, onde o orçamento do Ministério da Ciência é reduzido a cada ano, onde a recusa em vacinar-se virou artigo de honra e cadafalso para o auto-genocídio de um povo. Tudo porque aos especialistas falta a coragem de dizer, em alto e bom som, que o Rei está nu.