sexta-feira, 17 de abril de 2020

Sobre a conversa de Krenak e Gleiser, em 17 de abril de 2020 (do falso calendário)

Numa conversa online em tempos de pandemia, o líder indígena e escritor Ailton Krenak e o físico e divulgador científico Marcelo Gleiser tiveram uma conversa sobre a seguinte questão: por que os brancos se separaram tanto da Natureza, e qual o caminho para reverter essa triste realidade?

Gleiser começou pontuando o papel da ciência na compreensão crescente dos fenômenos naturais, reduzindo o espaço do mito e do sagrado. Com a ciência veio a técnica, capaz de aumentar a produção agrícola, permitindo a sobrevivência de uma crescente população urbana, cada vez mais longe dos ambientes naturais. Assim, a “espécie mais sábia” do planeta usou sua inteligência, razão e ciência, para dominar a Natureza, mesmo à distância.

Krenak falou sobre a cultura indígena, comum a povos de todo o mundo, de nos vermos como parte da Natureza, e não como uma espécie “superior” destinada a “dominá-la”. Falou ainda da “flecha do tempo” (como se obrigada a chegar num lugar específico), característica da cultura judaico-cristã, que divide o mundo em três etapas: Criação e um breve Paraíso, milênios de sofrimento, e um futuro (alvo da flecha) onde a Terra e a Natureza teriam fim, e todos os obedientes ao Livro seriam finalmente levados a um lugar melhor, bem longe daqui, no “céu”.

Não espanta que o Ocidente tenha se distanciado tanto da Natureza, afinal isso vem sendo pregado há milênios, sob o terrorismo psicológico de um inferno eterno e doloroso para os pobres ignorantes que duvidarem. (De fato ignorantes, pois sua cultura ancestral foi destruída e, nas cidades para onde foram expulsos, são forçados ao analfabetismo funcional.)

As outras culturas, espalhadas pelo mundo e ameaçadas pelo homem branco judaico-cristão e capitalista, sempre viram a história não como uma flecha linear, mas como um círculo ou espiral, cujo início remoto pertence à mitologia, mas cuja realidade palpável se repete ano após ano, século após século, milênio após milênio, sem objetivo definido, a não ser o que escolhermos, conscientes ou nem tanto.


Criou-se um mito do “sobrenatural”, de “forças sobrenaturais”, “acima” e “além” da Natureza, quando a visão adulta reconhece que tudo é natural. Os ocidentais, homens e mulheres, se infantilizaram no decorrer dos últimos milênios, até o ponto em que é impensável reconhecerem o mundo real. Fogem da realidade, fogem do pensamento crítico, fogem do debate, como se a Natureza, a Realidade, fosse a inimiga, e a salvação residisse num “pós-vida” prometido por homens machistas e imperialistas, que via de regra usurparam, conquistaram, destruíram... E ainda assim a maioria espera (ou finge esperar) que dessa toca saia coelho?

O momento atual não é necessariamente um limite. Não é o “fim do mundo” que se aproxima, inevitável. O que passamos, como Krenak descreveu, está mais para um “ajuste de foco”, onde podemos olhar detalhes que antes não notávamos, e cabe a nós fazer bom uso da nova visão. Ninguém vai descer dos céus para nos salvar. Papai Noel não existe, já passou da hora de crescermos.

Gleiser, falando do parentesco evolutivo de todos os seres na Terra, nos lembrou que compartilhamos 25% dos nossos genes com as árvores. É o mesmo tanto que, em média, compartilhamos com tios, tias, sobrinhos e sobrinhas. Isso nos lembra que não são necessariamente a ciência e a técnica que estão em oposição aos ideais mais nobres. Pelo contrário, a ciência, a razão e a lógica sempre serão atacadas pelos que dependem de massas infantis para prosperarem. E como há raposas vestidas de galinhas! As faculdades de ciências humanas, filosofia e sociologia, estão cheias desses tipos. Os predadores atacam primeiro os órgãos vitais, para então desfrutarem da presa com tranquilidade.


Krenak falou ainda sobre como não aceitamos a morte. Se antes um indígena tinha mais de dez filhos, para que um ou dois terços sobrevivessem à idade adulta, os brancos chegaram para “corrigir a Natureza”, como se ignorantes de que não há espaço na Terra para uma população que cresce exponencialmente. Até nas áreas rurais, uma família numerosa dava aos pais uma tranquilidade – mesmo perdendo cedo alguns filhos – que os pais urbanos desconhecem. Pelo contrário, nas cidades a maioria não pode arcar sequer com três ou quatro filhos, muitos hoje sequer têm dois, por isso assistimos a uma geração que superprotege os filhos, como se envoltos por uma muralha. Os danos psicológicos desse sistema sequer são bem compreendidos, mas certamente não estão na ordem natural da mente humana.

A urbanização não muda só as famílias: muda também todo o sistema produtivo, em especial a agricultura. Sem pessoas no campo, latifundiários derrubam árvores para abrir espaço às máquinas – como se fosse esse nosso futuro natural. Máquinas caríssimas em paisagens planas e uniformes, sem animais em meio às plantações, que não conhecem mais esterco nem urina, mas crescem à base de compostos químicos pobres em nutrientes, e resultam em alimentos sem cheiro nem sabor, e de baixo poder nutritivo. Mas tudo isso é um projeto, não um acidente. Depois das revoluções comunistas, onde uma população rural forte e cheia de ideais tomou o poder dos donos do capital, foi quase automático o desenvolvimento de um projeto onde todos estes riscos seriam eliminados: o povo rural, sua força e seus ideais.

O conhecimento, seja ancestral ou moderno, mitológico ou científico, é a única arma que temos para mudar o alvo da tal “flecha do tempo”, que insiste em nos conduzir ao fim do mundo. As ciências não são inimigas dos saberes indígenas, pelo contrário. Os verdadeiros inimigos estão, como sempre, disfarçados de “santos” e “sábios”, infiltrados em instituições ilustres – igrejas e universidades – pregando a favor do monoteísmo branco, pai das monoculturas agrárias e culturais, ainda que na superfície pareçam dizer o contrário.

Apenas uma Reforma Agroecológica pode nos salvar dos que proferem palavras belas, porém falsas.



Link da conversa: https://www.youtube.com/watch?v=xeAI7GDOefg