sábado, 11 de julho de 2020

Tudo existe

Tudo existe. Essa afirmação pode parecer exagerada, e talvez seja, mas há nela um fundo de verdade.

Supondo que seja mesmo um exagero, ainda assim dizia Terêncio que nada que é humano nos é estranho. Pois ele viveu bem antes do rigor moralista destruir os banhos públicos da sua terra e declarar que quase tudo que é humano é proibido. Assim ele pôde conhecer a diversidade humana do seu tempo. A diversidade é a regra número um da Natureza, e assim como há incontáveis tipos de plantas, de insetos e de outros organismos, há também incontáveis tipos de pessoas, cada qual com suas peculiaridades. Se a maioria gosta de café, haverá quem não goste. Se quase todos gostam do dia, há quem prefira a noite. Se os homens em geral procuram belas esposas, há os que delas se afastem. A diversidade deve ser o filtro, quando olhamos para o público e esperamos fazer justiça em nossos julgamentos. Há os que dizem “não julgar”, mas com isso estão apenas permitindo que outros julguem em seu lugar, e geralmente é melhor denunciar uma injustiça do que evitar julgá-la.

Mas se “tudo existe”, então “tudo é permitido”? Não necessariamente. Temos sido animais sociais desde nossos antepassados mais remotos. Qualquer animal social vive em relativa harmonia, sem precisar de um código de leis nem de um batalhão de fiscais. Quase todo ser vivo sabe a diferença entre o certo e o errado, e os que não sabem – esses existem, posto que tudo existe – serão informados, ou corrigidos, ou finalmente expulsos pela maioria que sabe. Isso sempre foi assim, e só se tornou algo preocupante quando os moralistas decidiram criar tábuas de regras sobre o que seria permitido e o que seria proibido. A partir de então, os que deveriam se considerar apenas membros da comunidade passaram a se considerar membros do batalhão de fiscais, e as informações, as correções e as expulsões, que sempre foram exceção, tornaram-se regra. Aí então essa parcela da humanidade, que diz viver da lei, passou a viver do medo, da opressão, do controle, da dissimulação e da mentira. Mas, tudo existe, até isso.

A questão que devemos nos propor não é o que existe ou não, mas o quão comum e o quão raro é cada variedade de comportamento. É verdade que uma e outra mãe matará os próprios filhos e os colocará na sopa e os devorará, mas é um evento tão raro que não precisamos nos preocupar. A maioria das mães continuará cuidando e querendo bem à sua prole. Se algum dia, em cada casa, ou em cada rua, ou em cada vila, uma mãe começar a se alimentar dos próprios filhos, aí nós deveremos nos preocupar: algo na água ou na comida estará modificando o instinto natural. Até lá, concentremos nossa energia em cuidar bem dos vivos. Mas quem conta a história decide o que tem sido normal e o que não tem sido, e é muito fácil para os espertos convencerem os crédulos de que algo comum antes era raro ou inexistente. Essa é, de fato, a técnica que usam para impor suas tábuas de regras, e com isso ganharem um respeito que sua mediocridade jamais teria lhes dado. Mas esses tipos também hão de existir, como sempre existiram. A pergunta é: estamos vacinados contra eles?